Mínimas coincidências
Ela olhou o retrato mais uma vez. Imaginou que desse modo os momentos vividos com Alice surgiriam das profundezas de seu ser miúdo, indisciplinado, sonhador e angustiado. Porém, nem uma recordação mínima, perdida entre os acontecimentos inesquecíveis, aparecera para dar a Vivian a ilusão de que Alice jamais partiria. A memória é um fato excêntrico. Talvez seja um espasmo involuntário. Ou o duelo de um tigre com o destino para fugir de um labirinto adornado com espelhos, alçapões e fossos. Cada passo em falso destrói a perspectiva da saída. Vivian refletiu se Alice não fora um sonho, uma daquelas imagens que, uma vez esboçada na mente, imprimem tintas resistentes a qualquer alvejante, tíner ou substância ainda não inventada. Entre elucubrações idiotas e a fuga do laço que deveria ser irrevogável, Alice escapava: sem rosto, sem situações cotidianas, apenas como fio de esperança em uma felicidade inominável.
O verão se apresentava como uma estação árida, clichê e sem emoções naquele ano de 2004. Vivian decidiu que aquele seria o último ano em que deixaria de ser senhora de suas escolhas. A vida corriqueira e infernal, tediosa e violenta dos bares precisava ser enterrada em nome da sanidade, largada na encruzilhada de um mundo incorrigível, que perecia entre seus dentes, suas coxas e em seu coração. Desejava tão somente algo inédito. Uma fuga para o fundo do mar, uma viagem à lua, poderes psíquicos ou o amor. Amor por acidente, inevitável e eterno. Eterno enquanto durasse a cerveja que já esquentava em suas mãos, ou a conversa banal do sujeito de bigode à sua frente, do qual mal lembrava o nome. Somente mais um espectro em noites de invenções, que acrescentava dissabor à exasperação que a consumia. Jovens mulheres desfilavam sua beleza de um lado para o outro e o ritmo de suas pressas, de seus desapegos, de suas seduções, mantinha Vivian inquieta, alimentando uma expectativa oca, um desejo debilitado pelo agastamento do “sempre igual” e do “mais do mesmo”. Assim, a desesperança substituía o alvorecer. Nada preenchia o vazio no peito. Nem sessões à meia-noite no drive-in, vinhos baratos bebidos em shows de rock ou conquistas sexuais nas madrugadas.
Quando um deserto cotidiano de dúvidas começava a se tornar frustração, Vivian cruzou, em uma esquina comum, que dava acesso à avenida principal, com uma jovem peculiar: pele negra, olhos castanho-esverdeados, cabelos tingidos em laranja e verde e um rosto tão vivo que transmitia uma intensidade desconhecida até então por ela. Vivian, que soube, em criança, ser fruto de uma relação sexual baseada no comodismo de uma união que rendia ótimos benefícios financeiros, assustou-se com tamanho brilho que um olhar poderia irradiar. Nunca ponderou sobre essas surpresas da vida, já que se acostumara com procurar diversão até o enjoo sumir por instantes e estar pronto para uma nova rodada. Ah, e que emoção! Sensação ainda sem definição, já que nunca antes experimentada. Foi preciso um esforço colossal para conter aquela erupção de algo inesperado, implacável e impossível de dizer o que era. Fechou os olhos por um breve momento, quando os abriu, notou que a jovem entrara em uma lanchonete. A esse momento de pausa, de êxtase desmedido e inclassificável, dedicou-se às trinta e sete formas que imaginara para a aproximação e abordagem imbatíveis, que a levariam ao paraíso. Mas, de repente, afetando a recordação, uma dúvida surgiu, desagradável em seus pormenores, mas cruel em sua essência: os cabelos de Alice tinham realmente essas cores nos idos de 2004? Talvez fossem roxos com alguns fios rosas. A versatilidade camaleônica de Alice a confundia constantemente, do mesmo modo que seus disfarces psicológicos, idas e vindas de certezas e dramas.
Quem sabe, não se enganara novamente e a parada de Alice não tivera sido em uma sorveteria. Era dia de calor extenuante. Não, de chuva fina e céu cinzento. Será? E, talvez, o que movera cada passo seu, dos olhos que avistaram a moça até o “Oi! Como vai” desajeitado, não fora amor à primeira vista, mas apenas desejo sexual, puro e incontrolável.
Precisou admitir para si mesma: Alice era uma incógnita dentro de uma realidade abissal.
Nesses dias sem Alice, Vivian passava horas relendo e-mails, cheirando roupas, tocando livros para recordar como Alice pronunciava cada palavra. Qual perfume a sua pele exalava e quais obras literárias ganhara da amante, já que Alice não gostava de escrever dedicatória. Tudo se confundia com algo além daquilo que representava: fatos, ações, discursos, ritmos, descompassos, beijos, beliscões, abraços e rompimentos traçavam linhas que se cruzavam, que impediam a frágil verdade, de dias afortunados, de mostrar sua face sóbria. As linhas distorciam o viver e consagravam noites intranquilas. Sem conseguir identificar, nomear ou simplesmente reelaborar o tempo e o espaço, não conseguia êxito em separar os momentos vividos com Alice, com discernimento e precisão. Essa situação parecia uma traição à revelia do amor, como se roubasse de si mesma seu passado e desprezasse Alice, dizendo-lhe “A vida não tem tanta importância. As coisas são feitas para acabar. As lembranças, ainda mais”. A memória tentava ensiná-la a seguir em frente? Caminhou pelo quarto, que, decorado por Alice, continha pequenos fragmentos de sua alma retidos em incensos, quadros e travesseiros. Suspirou, sem recordar se Alice dormia nua em noites mornas e de silêncio sepulcral.
Um dia, Alice lhe lançou um desafio. “Vamos morar juntas. Se permanecermos unidas por cinco anos, então viveremos mais cinco e assim sucessivamente. Topa?”. A maneira peculiar de Alice revelar que deveriam ser felizes juntas encantou Vivian, que gravou o sorriso da amada pronunciando a proposta um bom tempo em sua mente. Mas, esse castelo de supostas alegrias infindas possuía seu alicerce em areias movediças. A memória colecionava rachaduras, abalos semelhantes a um terremoto, desníveis e toda a sorte de lacunas e esquecimentos que dão à vida ares dramáticos. Aquele dia, talvez, nunca tivesse existido. Tragada por suas incertezas, deixou-se prender por um sinuoso rumor: amaste seu próprio sentimento e a ele conferiu a designação “amor” e não a pessoa que o despertou, que merecia ser amada intensa e incondicionalmente. Então, nunca amaste quem amou?
Manuela chegou cedo à casa na qual Alice, sua irmã, vivera com Vivian por dez anos. Como era difícil para Manuela voltar lá sem pensar no sorriso franco de Alice. Ela confessou esse sentimento a Vivian, que a ouviu com certo ressentimento, por mais que tentasse evitar essa reação. Pareceu-lhe que todos sabiam exatamente o que viveram, menos àquela que era presenteada com os desabafos, entendia os temores e ajudava os sonhos a se tornarem planos para o futuro. As carícias, as peripécias e os desentendimentos estavam adormecidos em algum lugar. Deveriam estar. Por que, então, os móveis comunicavam histórias, assim como imagens e odores, apenas para Manuela? Vivian olhou para a jovem e captou em seu semblante o conforto da aceitação, a clareza de que a morte e sua inevitabilidade tornam a vida um absurdo do qual dores e resistências à paz de espírito são impropriedades a serem evitadas. Porém, Vivian tinha conhecimento de que não era essa a verdade. Para Manuela, a memória era uma doce companheira, afinal, durante os anos de convivência, tivera grandes atritos com a irmã, mas também imensas felicidades. Para Vivian, aquilo tudo começou a ganhar contornos de indignidade. No fundo, possuía a convicção de que ninguém era responsável pela sua memória engendrar armadilhas tão atrozes e indefectíveis, que a desarmavam e causavam uma desolação tamanha, que desejou inventar um beco sem saída e lá ficar até definhar e saborear o fim como questão de honra.
Algum tempo depois, quando refletia sobre a própria dor que camuflava a agonia infinita da negação, Vivian percebeu que ainda não havia chorado. Nem mesmo quando viu o maxilar partido de Alice pelo choque com a caminhonete que a atropelara. Ela assistiu tudo, de dentro de um brechó. Suas pernas paralisaram e um grito de terror morreu em suas cordas vocais. As companheiras que ambicionaram mudar o mundo e acabaram com dezenas de conquistas pequenas burguesas no colo, desligaram-se uma da outra de modo brutal, com a distância de seus corpos, um grito entalado na garganta e sangue no asfalto separando o primeiro dia, repleto de delicadezas e gozo abundante, do horror final.
Vivian refletiu por horas. Imaginou se estaria perdida em algum canto a resposta exata do porque mantinha na mente, em carne viva, cada detalhe do acidente fatal. E não se lembrava, por mais que se esforçasse, como os cabelos encaracolados de Alice ficavam depois de um temporal. Cobraria explicações de sua psicóloga, que não avançava nada em relação à sua amnésia seletiva ou à indistinção entre fantasia e realidade etc. Fez uso de Zolpidem para dormir.
“Areias do deserto, je t’aime, águas de uma cachoeira tocando a sabedoria encarcerada no cérebro, Bob Dylan, Amar, Verbo Intransitivo, corridas noturnas, chocolate quente, a sensação da língua rodeando o mamilo do seio direito, choros repentinos, torta de limão, cor azul, Mariana Aydar, sonho de visitar Bali, vôlei nas noites de quinta…”. Terminada a lista, Vivian esperava reconhecer nela indícios da vida plena que tivera com Alice, que o tigre encontrasse a saída do labirinto, trazendo em sua boca a memória fugitiva, que a abandonou assim que o caixão, residência do corpo inerte de Alice, fora coberto com a terra, agora tão cobiçada por ela. Como desejava parar de respirar. Lembrar, verbo transitivo direto, transformar-se em verbo “transitivo indireto”, pois as recordações não estariam em Vivian, já que, quanto mais forçava deixar iminente um fato da vida, algo escapava sem cerimônia e sem prazo de devolução. Parecia que tentava desesperadamente preencher lacunas da existência de outra pessoa, como se um dia alguém houvesse narrado uma história e ela pescasse apenas fragmentos para esclarecer os detalhes e compor o todo de uma vida vivida a duas. Que amor era esse que não lhe permitia sondar a fundo as próprias lembranças? Carregava a sutil tentação de que Alice apreciava ouvir Cazuza aos sábados. Mas depois ponderou se não era a sua imaginação criando uma Alice idêntica a si mesma, com gostos e gestos similares, que resultariam na paz e paraíso na terra.
Nos últimos dias, coincidências surgiram para confirmar pequenas certezas sobre pormenores de seu relacionamento. Em um momento de uma tarde chuvosa de domingo, viu uma moça correr no parque, sorrindo, e soube, ali, que Alice sempre fazia isso, assim que sentia as gotas de chuva engrossar e acertar-lhe com força o rosto. Em outra ocasião, notou que Manuela segurava a xícara de café com a mão esquerda, apesar de ser destra, e nisso ela se assemelhava à irmã, que fazia a mesmíssima coisa. Às vezes abria um livro, qualquer volume de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, e todas as fragrâncias que se misturavam para dar o odor de algo caliente de fundo plácido se desentranhavam das páginas da monumental obra do escritor francês e carregavam Vivian para um passeio sobre as areias da praia de Boa Viagem ou alguma pizzaria entre tantas que Alice adorava. E as coincidências, como a de uma mulher de cabelo laranja que procurava em uma livraria obras de Toni Morrison, desfilavam diante de seus olhos, ouvidos, paladar e corpo, atiçando o desejo de desaparecer em um vão e cair, de pé, sobre aquilo que nunca deveria ser esquecido: o amor retribuído na mesma moeda. Em vez disso, o que ela possuía era um vulto inexato aguardando formas que o preenchessem, que o dessem motivos para exibir a plenitude latente, mas negada a existir, que enfrentava um obstáculo terrível: o medo que a memória confirmasse que a felicidade já fora vivida, que um dia ela apareceu, fez morada, prometeu vida eterna e partiu sem se despedir. E, enfim, Vivian chorou, não se preocupando em saber se alguma vez, em sua jornada nessa vastidão dominada pelo acaso, deixou que as lágrimas fossem um contundente desabafo e a sincera reconciliação com o mundo. E daí se o cotidiano de uma hora para a outra passou a ser entendido como o passado remoto. E se o tigre deitado em seu labirinto lambe preguiçosamente o pelo. E que ela tenha se tornado escrava das coincidências que convulsionavam a memória e convocavam a imaginação a partilhar um destino incerto, mas ainda assim um destino.
Vivian caminhou até a estante e apanhou “A fugitiva”, sexto volume de “Em busca do tempo perdido”. A madrugada era longa, e, como mais um dia prometia surgir, esboçou um sorriso e fingiu lembrar-se de cada acontecimento, evento e incidente. Nesse dia, abandonou, sobre a cabeceira da cômoda, a cartela de Zolpidem. Em seguida, começou a ler o livro.