Muertos – por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Muertos
La Llorona Natalia Lafourcade
No sé qué tienen las flores, llorona Las flores de un campo santo No sé qu tienen las flores, llorona Las flores de un campo santo
Que cuando las mueve el viento, llorona Parece que están llorando Que cuando las mueve el viento, llorona Parece que están llorando
Ay de mi, llorona, llorona, llorona tú eres mi chunca Ay de mi llorona, llorona, llorona tú eres mi chunca
Me quitarán de quererte, llorona Pero de olvidarte nunca Me quitarán de quererte, llorona Pero de olvidarte nunca
A un Santo Cristo de fierro, llorona Mis penas le conté yo A un Santo Cristo de fierro, llorona Mis penas le conté yo
Cuáles no serían mis penas, llorona Que el Santo Cristo lloró Y cuáles no serían mis penas, llorona Que el Santo Cristo lloró
Ay de mi llorona, llorona, llorona de un campo lirio Ay de mi llorona, llorona, llorona de un campo lirio
El que no sabe de amores, llorona No sabe lo que es martirio El que no sabe de amores, llorona No sabe lo que es martirio
Todos me dicen el negro, llorona Negro pero cariñoso Todos me dicen el negro, llorona Negro pero cariñoso
Yo soy como el chile verde llorona Picante pero sabroso Yo soy como el chile verde llorona Picante pero sabroso
Ay de mi llorona, llorona, llorona llévame al río Ay de mi llorona, llorona, llorona llévame al río
Tápame con tu reboso llorona Porque me muero de frío Tápame con tu reboso llorona Porque me muero de frío
Si porque te quiero, quieres, llorona, quieres que te quiera más Si porque te quiero, quieres, llorona, quieres que te quiera más
Si ya te he dado la vida llorona, ¿qué más quieres?, ¿quieres más? Si ya te he dado la vida llorona, ¿qué más quieres?, ¿quieres más?
¡Ay de mi, ay de mi, ay de mi, llorona! ¡Ay de mi, ay de mi, ay de mi, llorona! |
A Chorona Natalia Lafourcade
Não sei o que têm as flores, chorona As flores de um campo santo Não sei o que têm as flores, chorona As flores de um campo santo
Que quando as move o vento, chorona Parece que estão chorando Que quando as move o vento, chorona Parece que estão chorando
Ai de mim, chorona, chorona, Chorona tu és meu coração, Ai de mim, chorona, chorona, Chorona tu és meu coração
Deixarei de querer-te, chorona Mas de recordar-te, não Deixarei de querer-te, chorona Mas de recordar-te, não
A um Santo Cristo de ferro, chorona Minhas penas lhe contei eu A um Santo Cristo de ferro, chorona Minhas penas lhe contei eu
Quais não seriam minhas penas, chorona Que o Santo Cristo gemeu Quais não seriam minhas penas, chorona Que o Santo Cristo gemeu
Ai de mim, chorona, chorona Chorona de um campo lírio Ai de mim, chorona, chorona Chorona de um campo lírio
Quem não sabe de amores, chorona Não sabe o que é martírio Quem não sabe de amores, chorona Não sabe o que é martírio
Todos me chamam de negro, chorona Negro, mas carinhoso Todos me chamam de negro, chorona Negro, mas carinhoso
Sou como pimenta verde, chorona Ardido mas saboroso Sou como pimenta verde, chorona Ardido mas saboroso
Ai de mim, chorona, chorona Chorona me leva ao rio Ai de mim chorona, chorona Chorona me leva ao rio
Me cubra com seu xale, chorona Porque estou morrendo de frio Me cubra com seu xale, chorona Porque estou morrendo de frio
Se porque te quero, queres, chorona, Queres que te queira mais? Se porque te quero, queres, chorona Queres que te queira mais?
Se já te dei minha vida, chorona Que mais queres, queres mais? Se já te dei minha vida, chorona Que mais queres, queres mais?
Ai de mim, ai de mim, ai de mim, chorona! Ai de mim, ai de mim, ai de mim, chorona! |
A canção “La Llorona”, elegantíssima, segundo DJ Dolores, meu vizinho – e concordo com ele –, surgiu na região do Istmo de Tehuantepec (a parte estreita, no sul do México, território divido entre Tabasco, Veracruz, Oaxaca e Chiapas), durante a Revolução Mexicana, ou seja, na segunda década do século passado. Era uma canção popular triste, de amor, contendo incerta evocação da lenda da Llorona, uma mulher que vaga angustiada pela noite, perguntando, com seus gemidos lancinantes, por seus filhos mortos. No geral, as letras não contam essa história, mas incluem certas imagens, como essa ida ao rio, e o frio que chega por causa disso, que conota não só tristeza e abandono, mas também a própria morte. Em algumas versões do mito, conta-se que a Llorona havia matado seus próprios filhos, para que não caíssem prisioneiros ou escravizados, seja pelos espanhóis, seja pelas oligarquias derrubadas pela Revolução. Volto já a falar da lenda, quando terminar de falar da versão que escolhi e de suas questões de tradução.
Como o mito, a letra de “La Llorona” variava bastante, e segue variando, recebendo reescritas e adaptações a contextos de execução de parte seus diferentes intérpretes. A primeira versão a atingir os meios de cultura de massa foi a de Andrés Henestrosa, em 1941, uma versão muito mais longa que as mais recentes, coalhada de imagens e signos que remetem à Revolução Mexicana, ou ao menos à ideia de uma terra em guerra, como por exemplo, nesta estrofe:
De las arcas de la fuente ¡Ay, Llorona!
corre el agua y nace la flor;
De las arcas de la fuente ¡Ay, Llorona!
corre el agua y nace la flor;
si preguntan quién canta ¡Ay, Llorona!
les dices que un desertor,
que viene de la campaña ¡Ay, Llorona!
(viene) en busca de su amor.
A versão mais notável será a de Chavela Vargas, mais curta e muito intensa na caracterização da relação amorosa. Vargas, que começou sua carreira cantando nas ruas, trouxe a ranchera, gênero da canção “La Llorona” para perto de si: despiu a ranchera dos trompetes e demais arranjos usuais, para concentrar o acompanhamento da voz no violão. Essa adaptação da realidade artística corresponde à própria adaptação que Chavela impôs à realidade: usava roupas pensadas para homens, cobria-se de jorongo vermelho, andava armada, bebia muito. Ao cantar, recriava a voz de um homem bêbado, reduzia o tempo das canções e as fazia mais dramáticas: resultavam canções entre o emocional, o confessional e o cômico ou, ao menos, irônico: puro camp sapatão. E Chavela Vargas era amiga de Frida Kahlo. Sei lá, achei que vocês gostariam de saber, se ainda não sabiam.
Lila Downs cantou “La Llorona” em seu álbum “La Sandunga”, de 1999. Downs, que além de artista da performance é antropóloga, vinha de um processo de pesquisa que resultou num primeiro álbum indepentente, com apoio do Instituto de Oaxaqueño de las Culturas, “Ofrenda”, de 1994. Nesse primeiro trabalho, a cantora gravou canções tradicionais de seu estado natal, incluindo composições em idioma mixteco. Entre essa primeira experiência e “La Sandunga”, que projetou sua carreira internacional, Lila Downs passou a adotar uma atitude radicalmente cosmopolita, ao acolher em sua pesquisa elementos do blues, do jazz, do bolero e do rock para projetar a cancão tradicional mexicana, e especificamente a mixteca (duas faixas nesse idioma formam parte do álbum).
O sucesso mundial do álbum levou a cantora oaxaquenha a interpretar tantas vezes “La Llorona”, que, no processo, passou a entender a morte sagrada e feminina como tema da composição. Assim, em interpretações posteriores passa a deixar claro que a morte da personagem como símbolo do massacre indígena perpetrado pela invasão espanhola. Uma nova gravação foi incluída no álbum “Border/La Linea”, de 2001, dedicado às almas dos mexicanos que morreram tentando atravessar a fronteira com os Estados Unidos.
Escolhi essa versão de Natalia Lafourcade por ela ter sido lançada em álbum poucas semanas antes que a pandemia atingisse a América Latina. Há algo de presságio nisso, e vamos falar mais adiante de presságios. Mas não, só: gosto do modo como Lafourcade ordena os versos, recortados de diversas interpretações anteriores, e faz surgir uma tênue progressão narrativa: o espaço do luto, o narrador que se declara à Llorona, as considerações sobre a dor da perda, o narrador que se apresenta como subalterno socialmente, e, no fim, o progressivo desespero suicida até o fim da canção. Essa gravação tão recente me parece intermediária entre as versões de Chavela Vargas e Lila Downs.
Para traduzir a letra, tentei manter as características formais de canção popular em redondilhas maiores, com suas rimas. A composição é elegante, com as rimas unindo os pares de quartetos que trazem um bloco de sentido para a canção, e esses blocos são justapostos para, na versão de Lafourcade, construir um fio narrativo. O problema é que no espanhol os artigos começam por consoante, e por isso não se perdem na vogal que encerra a palavra anterior. O verso “No se qué tienen las flores” tem sete sílabas, mas “Não sei que têm as flores” tem seis, porque fazemos te-nhas onde estava tie-nen-las, porque não há uma consonante que deixe o artigo sozinho em sua sílaba. Outras variações de contagem aparecem com o par “eres” e “és”. Embora o “tu és” continue sendo uma sílaba poética, contei com uma possível tonificação do pronome por algum improvável intérprete imaginário que queira cantar minha tradução.
Cheguei a fazer versões que dificultavam manter o elemento mais importante: as rimas. E desisti delas, porque a rima é mais estruturante nesse lamento que o metro. Inclusive, para que não se perdessem nem as rimas, nem a divertida sintaxe de “mis penas le conté yo”, coloquei o Santo Cristo a gemer em vez de chorar. Conto com as mentes sujas dos leitores, sim, não estou torcendo para que todos sublimem o gemer. Até preparei mentalmente uma explicação que evoque a proximidade entre divino e carnal no vocabulário barroco de agonia e de êxtase. Bem, e está escrita agora. O par coração/não foi uma opção que comprometeu o sabor local mexicano da estrofe. Chunca seria na fala dos jovens de hoje crush. Ou chuchuzinho, na fala boomer (embora a expressão seja mais antiga que a geração promotora da derrocada ecológica do planeta – estou meio bravo hoje, me perdoem). A dificuldade de rimar isso me empurrou para um conservador “coração”, que me permitiu substituir “nunca” por “não”. O resultado pode não ser dos mais criativos, mas o tom da letra não se perde com o uso de opções que poderiam produzir humor involuntário.
Então para não perder o ritmo da canção, traduzi cantando, e me descompromissei com a rigidez da métrica. Minha gata não vai sofrer sozinha se você ouvir aqui o pocket show que prova que minha versão não é formalmente irretocável, mas serve para (alguém que saiba fazer a coisa) cantar:
A lenda da Llorona antecede a invasão branca, e aparece na lista de presságios funestos da destruição do México pelos espanhóis escrita pelo frade Bernardino de Sahagún na sua “Historia General de las Cosas de Nueva España”. Embora o capítulo primeiro do livro doze seja todo muito interessante, trago apenas a breve descrição de nossa assombração.
13. —Sexto presagio funesto: Muchas veces se oía: una mujer lloraba; iba gritando por la noche; andaba dando grandes gritos: — ¡Hijitos míos, pues ya tenemos que irnos lejos! Y a veces decía: — Hijitos míos, ¿a dónde os llevaré?
13. —Sexto presságio funesto: Muitas vezes se ouvia: uma mulher chorava; seguia gritando pela noite; andava dando grandes gritos: — Filhinhos meus, agora já temos que ir para longe! E às vezes dizia: — Filhinhos meus, aonde os levarei?
Não tenho notas de tradução, propriamente, mas apenas a vontade de destacar o “pues” de apoio da fala hispano-americana, em especial na Mesoamérica. Usei “agora”, reforçando o “já”, porque “pues” aqui está nessa função fática/enfática. A vontade de destacar o “pues” é porque morei na Nicarágua e senti que podia enganar os nicaraguenses quanto a minha origem quando aprendi a usar o “pues” na fala como eles.
O retrato da “Llorona” como uma figura que é a um tempo vítima e confrontadora do colonialismo aparece na letra de Gaby Moreno, cantora muito popular na Guatemala e nos Estados Unidos, nas comuinidades hispanas, que escreveu para a canção dos créditos do filme “La Llorona”, dirigido pelo guatemalteco Jayro Bustamante.
Diretor dos também ruidosos “Ixcanul” e “Temblores”, Bustamante completa a santíssima trindade temática que faz dele um demônio nas sociedades conservadoras latino-americanas, em ordem de aparição de seus filmes: indígena, gay e, com “La Llorona”, comunista. Esse último, onde está a canção que traduzi em seguida, foi produzido logo após a morte do General Efraín Ríos Montt, falecido aos 91 anos sem ser devidamente punido pelos massacres que perpetrou contra o povo maia e demais opositores do regime no pouco mais de ano de comando da ditadura militar na Guatemala, entre 1982 e 1983. Nesse período, de acordo com a Comissão da Verdade de 1999, mais de 600 aldeias maias foram completamente destruídas, e seus habitantes mortos, torturados, violentados. A ditadura seguiu, depois que Ríos Montt foi deposto por novo golpe, dando continuidade ao Holocausto Silencioso do povo maia.
O filme de Bustamante lida com a frustração e o sentimento de vitória do horror que atingiram os povos indígenas da Guatemala na condução dos julgamentos de Ríos Montt, com a criação de um general fictício, de história semelhante. E a Llorona, não só no filme, mas também na canção, aparece como vítima e figura forte em busca de justiça.
La Llorona de los Cafetales Gaby Moreno
Todos lloraban tu tierra, llorona Tu tierra ensanguentada Todos llorban tu tierra, llorona Tu tierra ensanguentada
Sollozos de un pueblo herido, llorona Y de su voz silenciada Sollozos de un pueblo herido, llorona Y de su voz silenciada
No se que tienen las flores, llorona Las flores del campo santo No se que tienen las flores, llorona Las flores del campo santo
Que cuando las mueve el viento, llorona Parece que están llorando Que cuando las mueve el viento, llorona Parece que están llorando
Te escondías entre las milpas, llorona Para no ser perseguida Te escondías entre las milpas, llorona Para no ser perseguida
Las almas perdidas vagan, llorona Y sus lamentos no se olvidan Las almas perdidas vagan, llorona Y sus lamentos no se olvidan
Los niños se vistieron de hojas, llorona Y las ropas quedaron en trapos Los niños se vistieron de hojas, llorona Y las ropas quedaron en trapos
Un grito agónico sueltas, llorona Te quiebran en mil pedazos Un grito agónico sueltas, llorona Te quiebran en mil pedazos
La luz que alumbraba, llorona, llorona En tinieblas te dejó La luz que alumbraba, llorona, llorona En tinieblas te dejó
Arrebataron tus sueños, llorona Pero tu fuerza quedó Arrebataron tus sueños, llorona Pero tu fuerza quedó
Viniste por los cafetales, llorona Doliente, clamando justicia Viniste por los cafetales, llorona Doliente, clamando justicia
Las balas callaron tus llantos, llorona Y desde esa vez no eres la misma Las balas callaron tus llantos, llorona Y desde esa vez no eres la misma
Lava tus penas, llorona, llorona Con agua bendita del río Lava tus penas, llorona, llorona Con agua bendita del río
Convierte tu angústia en calma, llorona Y la madrugada en rocío Convierte tu angústia en calma, llorona Y la madrugada en rocío |
A Chorona dos Cafezais Gaby Moreno
Todos choravam tua terra, chorona Tua terra ensanguentada Todos choravam tua terra, chorona Tua terra ensanguentada
Soluços de um povo ferido, chorona E de sua voz silenciada Soluços de um povo ferido, chorona E de sua voz silenciada
Não sei o que têm as flores, chorona As flores do campo santo Não sei o que têm as flores, chorona As flores do campo santo
Que quando as move o vento, chorona Parece que estão chorando Que quando as move o vento, chorona Parece que estão chorando
Te escondias no milharal, chorona Para não ser perseguida Te escondias no milharal, chorona Para não ser perseguida
As almas perdidas vagam, chorona E seus lamentos não se esquecem As almas perdidas vagam, chorona E seus lamentos não se esquecem
Os meninos se vestiram de folhas, chorona As roupas ficaram em trapos Os meninos se vestiram de folhas, chorona As roupas ficaram em trapos
Um grito agônico soltas, chorona Te quembram em mil pedaços Um grito agônico soltas, chorona Te quembram em mil pedaços
A luz que iluminava, chorona, chorona Em trevas te deixou A luz que iluminava, chorona, chorona Em trevas te deixou
Arrebataram teus sonhos, chorona Mas tua força ficou Arrebataram teus sonhos, chorona Mas tua força ficou
Vieste pelos cafezais Dolente, clamando justiça Vieste pelos cafezais Dolente, clamando justiça
As balas calaram teus prantos, chorona E desde essa vez não és a mesma As balas calaram teus prantos, chorona E desde essa vez não és a mesma
Lava tuas penas, chorona, chorona Com a água bendita do rio Lava tuas penas, chorona, chorona Com a água bendita do rio
Converte tua angústia em calma, chorona E a madrugada em rocio Converte tua angústia em calma, chorona E a madrugada em rocio |
Nesta tradução tentei ser fiel ao sentido, e não me preocupei nem com métrica nem com rima, e isso se deve ao tom que este ensaio está tomando. Mantive “rocio” em lugar do nosso mais comum “orvalho” porque não era preciso, tampouco fugir da rima onde fosse fácil mantê-la. E nada impede um retorno posterior ao texto para resolvê-lo como música: às vezes a solenidade de versão final que se busca para os textos mata o jogo de escrevê-los e reescrevê-los, do exercício.
Rigoberta Menchú conheceu o horror do Holocausto Silencioso antes do governo Ríos Montt. Em 1979 ou 1980, a mãe e o irmão da Nobel da Paz de 1992 foram sequestrados, brutalmente torturados e assassinados. Seu pai morreu quando foi incendiadaa Embaixada da Espanha na Cidade da Guatemala, onde se reuniam indígenas de movimentos civis unidos para pedir o apoio do país para exigir justiça para o Massacre de Uspatán, outro de tantos massacres de aldeias maias. Em 1984, seu outro irmão, que havia se juntado à guerrilha, foi assassinado depois de ter se rendido ao exército guatemalteco.
“Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia”, é uma biografia-depoimento, em que, muito mais do que protesto, a ativista afirma para Elizabeth Burgos, que preparou o texto escrito, sua maneira de ser no mundo e o direito a ser quem é. Escolhi o capítulo em que Menchú fala de morte, seus rituais, seu papel na vida do povo maia e a consciência de que a luta por direitos pode levar a uma morte sme rituais – e que os maias já contavam com isso.
Como não quero comentar o texto depois, porque quero deixar para quem lê o depoimento de Rigoberta Menchú a chance de reflexão solitária, comento a tradução antes de mostrá-la. Tentei o máximo possível manter os elementos de oralidade escolhidos por Elizabeth Burgos para caracterizar a fala. Tentei manter a estrutura tópico-comentário, que também fazemos em português (por exemplo, “a casa eu não moro mais nela”) salvo quando o texto exigia indeterminação de sujeito ou voz passiva pronominais, que em português ficam muito distantes da fala, então decidi substituí-los por formas sem pronome. “O sea” é um cacoete semelhante a “quer dizer”, em falas brasileiras, por isso a substituição. “Ladino” é uma forma de se referir ao branco espanhol, e embora derive de referiencia aos judeus da Península Ibérica, esse elemento não é parte do significado da palavra empregada nos dialetos do espanhol correntes na América Central.
XXVII. SOBRE LA MUERTE
“A poco empezaron a descender por la ladera del Poniente. Entonces una nube como de lluvia lo ocultó.” Popol Vuh
El fenómeno de la muerte entre nosotros los indígenas, es algo a lo que uno se va preparando. Es algo que no viene como algo desconocido, sino que es como un entrenamiento. Por ejemplo, la caja del muerto se construye mucho antes, para que la persona que va a morir, el viejo, conozca su caja. Y, en el momento en que va a morir, en que siente que va a morir, llama a la persona que más quiere, a la persona de la cual está más cerca, que puede ser una hija o una nieta en el caso de una abuela; o un hijo o un nieto en el caso del abuelo o cualquier persona que esté muy próxima, para hacerle las últimas recomendaciones y transmitirle, a la vez, el secreto de sus antepasados y también trasmitirle su propia experiencia, sus reflexiones. Los secretos, las recomendaciones de cómo hay que comportarse en la vida, ante la comunidad indígena, ante el ladino. O sea, cosas que se vienen repitiendo desde hace generaciones para conservar la cultura indígena. La persona que recibe las recomendaciones guarda el secreto y las va transmitiendo, antes de morirse, de generación en generación. Después reúne a la familia y también a la familia le habla, le repite las recomendaciones, les repite lo que vivió. No es como los secretos, que se los dice a una sola persona; las recomendaciones se las dice a todo el mundo y muere tranquilo. Muere con la sensación de haber cumplido con su deber, con su vida, con lo que tenía que hacer.
La ceremonia de la muerte se hace en la casa del muerto. Viene todo, todo el pueblo a velar al muerto, a visitar a la familia y la comunidad se encarga de todos los gastos. O sea, que la familia no tiene que hacer ningún gasto. Se vela al muerto, se prepara comida para la gente que está presente.
Una cosa muy importante es el trago, la bebida. Es una ocasión en que también se come mejor. Se puede comer carne y otras cosas. Además se hace una especie de ceremonia. Se ponen candelas en los cuatro puntos cardinales. Un poco repitiendo la ceremonia que se hace con el maíz, con la siembra del maíz. Se cortan flores, y es una de las pocas veces que se hace eso. Para el muerto sí se cortan flores y se ponen alrededor de su caja. Después se habla del muerto. Todo el mundo cuenta algo sobre el muerto. La familia habla y si no tiene familia, habla el elegido del pueblo, que es como su familia. Se habla de él, se cuenta lo que hizo en su vida. Y no solamente se hace el elogio, sino también la crítica. Durante toda la noche se habla del muerto, de lo que hizo en la vida. Rememorando a la persona.
No se deja al muerto mucho tiempo en casa, no se vela mucho, sino que se le entierra antes de que pasen las veinticuatro horas. Tiene que quedarse lo menos posible. Una noche para que se pueda hacer la ceremonia, pero después se le entierra. Es muy importante eso de las sepulturas. Un detalle es que cuando se le entierra, se ponen en su caja todos los objetos que más quería en la vida. Los objetos no van a servir a los herederos, sino que se quedan con él. Por ejemplo, su machete, el machete que lo acompañó durante su vida. Se entierran todas las cosas que le gustaban; su taza para beber, sus utensilios de la vida cotidiana que lo acompañaron en vida. Y su ropa, cuando murió, se deja en un lugar y ya no se usa más, a menos que pueda servir a un amigo muy querido, a una persona que quería mucho. En la agonía, todo el mundo está al acecho de lo que va a decir y recomendar. Se cuenta que en el momento en que está agonizando, hace un recuento de la vida y pasa en su mente por todos los lugares donde ha vivido. O sea, si ha vivido en una finca, pasa otra vez, su espíritu, su mente.
El hecho de matar a una persona. La muerte vivida por los demás, —sea la muerte por accidente o de otros modos—, es una cosa que sufrimos mucho, porque es una cosa que se sufre en carne propia. Por ejemplo, la forma como murió mi hermanito, matado. Ni siquiera nos gusta matar a un animal. Porque no nos gusta matar. No hay violencia en la comunidad indígena. Por ejemplo, la muerte de un niño. Si un niño murió de malnutrición, no es culpa del padre sino por culpa de las condiciones del ladino, es un atropello debido al sistema. Sobre todo antes, todo era culpa del ladino. Ahora hemos reflexionado. Muchas cosas que repetían los abuelos es que, ahora nos quieren acabar con las medicinas, con todas las cosas. Que ahora nos quieren hacer vivir de otra forma a la que queremos vivir. Matar es para nosotros algo monstruoso. De allí la indignación que sentimos por todo lo de la represión. Más aún, la entrega a la lucha es una reacción de cara a eso, a todo ese sufrimiento que sentimos.
Nosotros hemos depositado nuestra confianza en los compañeros de la montaña. Ellos vieron nuestra situación y viven un poco lo que nosotros vivimos. Se plegaron a las mismas condiciones que nosotros. Uno ama sólo aquella persona que come lo que nosotros comemos. Una vez que el indígena abre su corazón a ellos tendrá a todos los suyos en la montaña. No nos hemos sentido engañados como por ejemplo, como nos sentimos con el ejército, que viene a llevarse a los hijos de los indígenas. Eso significa que rompen su cultura, todo su pasado. Lo sentimos como un atropello cuando se vienen a agarrar a los hombres, a los muchachos, porque sabemos que los vamos a volver a ver pero ya no serán los mismos. En el caso del soldado hay algo mucho más grave, no sólo es el hecho de que pueda perder su cultura, sino que también el soldado indígena puede llegar a matar a los otros.
Cuando los indígenas deciden ir a la montaña saben que puede suceder cualquier cosa. Se pueden morir en el combate, en cualquier momento. Como esos ritos no se pueden hacer en la montaña alrededor de la muerte porque es un poco difícil por las condiciones, hacen en el pueblo una ceremonia, la ceremonia de las recomendaciones. La misma ceremonia que hace el muerto antes de morir, con su familia, lo hace el indígena antes de ir a la montaña en el caso de que sucediera algo, sirve para pasar sus secretos, antes de irse a la guerrilla. Una noche se reúnen. Por ejemplo, una familia que se va al día siguiente, se reúne y hace la ceremonia, las recomendaciones. Después se va. Es para cumplir en caso de que algo suceda.
XXVII. SOBRE A MORTE
“Há pouco começaram a descer pela ladeira do Poente. Então uma nuvem como de chuva o ocultou.” Popol Vuh
O fenômeno da morte entre nós, indígenas, é uma coisa para que vamos nos preparando. É algo que não vem como algo desconhecido, mas como um treino. Por exemplo, o caixão do morto é construído muito antes, para a pessoa que vai morrer, o velho, conhecer seu caixão. E, no momento em que vai morrer, em que sente que vai morrer, chama a pessoa que mais ama, a pessoa mais próxima dele, que pode ser uma filha ou uma neta no caso de uma avó; ou um filho ou um neto no caso do avô ou qualquer pessoa que seja muito próxima, para lhe fazer as últimas recomendações e transmitir, então, o segredo de seus antepassados e também transmitir sua própria experiência, suas reflexões. Os segredos, as recomendações de como se deve se comportar na vida, diante da comunidade indígena, diante do ladino. Quer dizer, coisas que se vêm repetindo há gerações para poder conservar a cultura indígena. A pessoa que recebe as recomendações guarda o segredo e vai transmitindo, antes de morrer, de geração a geração. Depois reúne a família e também fala para a família, repete as recomendações, repete o que viveu. Não é como os segredos, que diz para uma pessoa só; ele dá as recomendações a todo mundo e morre tranquilo. Morre com a sensação de haver cumprido seu dever, sua vida, o que tinha de fazer.
A cerimônia da morte é feita na casa do morto. Todos vêm, toda a aldeia vem velar o morto, visitar a família, e a comunidade se encarrega de todos os gastos. Quer dizer, a família não tem que gastar nada. Velam o morto, preparam comida para as pessoas que estão presentes.
Uma coisa muito importante é a cachaça, a bebida. É uma ocasião também para comer melhor. Pode comer carne e outras coisas. Além disso fazem uma espécie de cerimônia. Colocam velas nos quatros pontos cardeais. Um pouco repetindo a cerimônia feita com o milho, com a semeadura do milho. Colhem as flores e é uma das poucas vezes que fazem isso. Para o morto sim, colhem flores para colocar ao redor de seu caixão. Depois se fala do morto. A família fala e se não tem família, fala o escolhido da aldeia, que é como sua família. Fala-se dele, conta-se o que fez em sua vida. E não se fazem só elogios, mas também a crítica. Durante toda a noite se fala do morto, do que fez em sua vida. Rememorando a pessoa.
O morto não fica muito tempo em casa, não se vela muito, e ele é enterrado antes que passem vinte e quatro horas. Tem que ficar o mínimo possível. Uma noite para fazer a cerimônia, mas depois já é enterrado. É muito importante a história das sepulturas. Um detalhe é que quando vão ser enterrados, colocam em seu caixão todos os objetos de que mais gostava na vida. Os objetos não vão servir aos herdeiros, e ficam com o morto. Por exemplo seu facão, o facão que o acompanhou por toda a vida. Enterram com ele todas as coisas de que ele gostava; sua xicara para beber, seus utensílios da vida cotidiana que o acompanharam na vida. E sua roupa de quando morreu fica em um lugar e já não se usa mais, a menos que sirva a algum amigo muito querido, a uma pessoa muito querida. Na agonia, todo mundo fica atento ao que ele vai dizer e recomendar. Dizem que no momento em que está agonizando, o morto faz uma retrospectiva da vida e sua mente passa por todos os lugares onde viveu. Quer dizer, se morou numa fazenda, passa por ela outra vez, seu espírito, sua mente.
O fato de matar uma pessoa. A morte vivida pelos outros, — seja morte por acidente ou de outros modos—, é uma coisa que sofremos muito, porque é uma coisa que se sofre na própria carne. Por exemplo, a forma como morreu meu irmãozinho, matado. Não gostamos nem de matar um animal. Porque não gostamos de matar. Não tem violência na nossa comunidade indígena. Por exemplo, a morte de uma criança. Se uma criança morreu de desnutrição, não é culpa do pai, mas das condições impostas pelo ladino, é um problema do sistema. Ainda mais antes, tudo era culpa do ladino. Agora refletimos. Muitas coisas que os avós repetiam é que agora querem acabar com nossos remédios, com todas as coisas. Que agora querem nos fazer viver de forma diferente do que queremos viver. Matar é para nós algo monstruoso. Por isso a indignação que sentimos com o assunto da repressão. Ainda mais, a entrega à luta é uma reação direta a isso, a todo sofrimento que sentimos.
Nós depositamos nossa confiança nos companheiros da montanha. Eles viram nossa situação e passam um pouco pelo que nós passamos. Se curvaram às mesmas condições que nós. Só se ama àquela pessoa que come o que comemos. Quando o indígena abre seu coração a eles, mandará todos os seus para a montanha. Não nos sentimos enganados como, por exemplo, nos sentimos com o exército, que vem e toma os filhos dos indígenas. Isso significa que rasgam sua cultura, todo seu passado. Sentimos como abuso quando vêm e agarram os homens e os jovens, porque sabemos que vamos voltar a vê-los, mas não serão mais os mesmos. No caso do soldado há algo muito mais grave, e não é só porque poderá perder sua cultura, mas também porque o soldado indígena pode chegar a matas os outros.
Quando os indígenas decidem ir à montanha sabem que pode acontecer qualquer coisa. Podem morrer em combate a qualquer momento. Como esses ritos ligados à morte não podem ser feitos na montanha, porque as condições são um pouco difíceis, fazem na aldeia uma cerimônia, a cerimônia das recomendações. A mesma cerimônia que o morto faz antes de morrer, com sua família, o indígena faz antes de ir à montanha caso aconteça algo, serve para passar seus segredos, antes de ir à guerrilha. Uma noite se reúnem. Por exemplo uma família que vai embora no dia seguinte se reúne e faz a cerimônia, as recomendações. Depois vai. É para cumprir a vida, caso algo aconteça.
Este ensaio é sobre o Dia dos Mortos, nosso Dia de Finados, e por isso escolhi a Llorona, escolhi as injustiças e crueldades a que foram e são submetidos os povos indígenas das Américas. Escolhi mostrar também o depoimento de uma grande senhora maia quiché, grande figura política por quem tenho o tipo de admiração que se tem pela inspiração-deusa.
Escolhi isso tudo também porque enquanto escrevia este ensaio, o número de mortos por COVID-19 no Brasil excedia os 158 mil. Um desses mortos é Dona Helena, a matriarca de minha família, que morreu em um hospital de campanha que consigo ver da janela de meu apartamento, durante o lockdown de Recife, sem que seu filho (eu tampouco, mas quem sou eu?) a pudesse visitar. Enquanto eu terminava este ensaio, o governo articulava a privatização de nosso sistema de saúde. No Dia dos Mortos, seremos mais de 160 mil mortos. Dedico este ensaio às vítimas fatais de nosso Estado durante a pandemia, às vítimas da dor da perda e (digo não sem horror) aos que ainda vão cair. Que nosso horror e a força dos nossos ancestrais despertem nos vivos o desejo de pegar o tempo nas mãos.