Mulheres na Literatura (Curadoria) – Ieda Estergilda de Abreu
Na coluna Mulheres na Literatura (Curadoria), programada sempre para o último domingo de cada mês, Vanessa Franco realiza uma seleção de textos de uma autora, sejam poemas, contos ou crônicas, para revelar a vastidão estilística e temática do mundo literário produzido por mulheres.
Ieda Estergilda de Abreu. “Sou fiel, vivo como quem vive, simples assim. Nasci em Fortaleza, CE, perto do mar, perto de coqueirais. Moro em São Paulo desde 1975, morei em Brasília, onde fiz jornalismo e sempre visito. Viajo menos do que gostaria, passeei em Havana, Madri, Paris, Toulouse e internamente sigo visitando lugares inimaginados. Escritora de poesias, crônicas, algumas histórias, textos assinados em revistas como Planeta, Caros Amigos, Bons Fluidos, o que me caracteriza como jornalista freelancer. Autora de: Mais Um Livro de Poemas, Grãos-poemas de lembrar a infância, A Véspera do Grito e O Jogo do ABC (para crianças), tenho dois originais inéditos de poesia e prosa. Amo e lamento tanto o Tietê que corre em São Paulo, que reuni umas 60 poesias sobre o rio e coordenei o projeto lítero-musical Tietê Água Boa para a Biblioteca Municipal Alceu Amoroso Lima, em 2013. Participei de oficinas poéticas coordenadas pelos poetas Eunice Arruda e Claudio Willer. E sigo, embalando sonhos, fatos, versos, tristezas e alegrias possíveis”.
***
Carnaval, esperança, que gente grande possa ser criança
A discussão começou no largo do Arouche, depois de uma chuva rápida de verão.
A mulher queria porque queria brincar o carnaval. Afinal, fazia três anos que não pulava, logo ela, nascida e criada na terra do frevo. O homem, durão, dizia que não ficava bem uma mulher casada, com filho, sair por aí se sacudindo, melhor ficar em casa sossegada, veriam os desfiles pela televisão, no conforto do lar. Ela lembrou que nos tempos de namoro e primeiros anos de casados, eles sempre iam aos bailes e aos ensaios de escola de samba.
Se para o homem os tempos tinham mudado, agora só queria sossego, a mulher continuava uma foliona roxa. Ainda cheia de fogo, tentava convencer seu amor a aproveitar aqueles dias. Mas era difícil ele entender coisas óbvias como a vida é breve, a juventude se esvai e o Carnaval era a saída para tirar os dois da rotina, três dias desligados de tudo, só sambando. Deixariam o filho com uma das avós, sem hora para voltar.
Saíram do largo e subiram a rua Rego Freitas, ela ansiosa, ele de cara amarrada. Quis atravessar a rua de braço dado, ele evitou o contato e entrou no bar mais próximo para comprar cigarros. Parecia um estranho, mas ela não iria desistir de brincar aquele carnaval, lutaria por ele nem que fosse o último de sua vida.
Tinham se conhecido numa quarta-feira de cinzas, o dia amanhecendo, vinham de um baile na Lapa, ainda tontos, suados, cada qual com sua turma. Os dois grupos entraram no mesmo boteco para tomar a saideira e a partir daí foi que tudo começou.
Enquanto ele comprava cigarros, ela pediu um café forte, puro, estava pronta para o embate. Relembrou com faceirice detalhes do começo daquela paixão de fim de carnaval que mudara suas vidas. Falou até dos confetes coloridos que tirara do pescoço dele, um por um, grudados com suor. Queria mostrar a importância que o carnaval tinha para os dois, e porque não merecia ser ignorado. Estava certa de que agora ele não resistiria. Mas o homem continuava irredutível, naquele ano não estava mesmo a fim de folia. Não via a hora de chegar sexta-feira para ficar dentro de casa e só sair na quarta depois do almoço. Direto para o trabalho. Planejava ver televisão, sim, os três dias seguidos, com cervejinha gelada e tudo o mais que tinha direito. De preferência, com ela ao lado. Mas a mulher não entendia por que ele não entendia.
Quando deram por si, estavam em frente à igreja da Consolação. Cansada de andar e discutir, tentar convencer, pés e coração machucados, a mulher parou numa das esquinas. Havia uma certeza dentro dela. Tudo menos o sossego do lar naqueles dias que para ela sempre tinham sido sinônimo de alegria e agitação. Ao olhar à esquerda, foi atraída pela visão de um grupo animado, pela música que vinha de lá. Era a Banda Redonda, reunida em frente ao Teatro de Arena, na rua Teodoro Baima, preparando-se para subir a avenida como acontecia todo ano.
A decisão veio rápida. Olhou seu amor e sentiu-se uma criança diante de um velho precoce e teimoso. Olhou a torre da igreja, o céu acima, amplo, olhou a si mesma, sacudiu os ombros e os cabelos, virou-se e sem dizer palavra, misturou-se à turma da banda. Cair no samba foi questão de segundos.