Mulheres na Literatura (Curadoria) – Nic Cardeal
Na coluna Mulheres na Literatura (Curadoria), programada sempre para o último domingo de cada mês, Vanessa Franco realiza uma seleção de textos de uma autora, sejam poemas, contos ou crônicas, para revelar a vastidão estilística e temática do mundo literário produzido por mulheres.
Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba/PR, graduada em Direito, é autora de ‘Sede de céu – poemas’ (Penalux, 2019), e aguarda a publicação de seu próximo livro – uns contos e outras crônicas – em fase de costuras e remendos. Já publicou textos em 41 antologias e coletâneas, sendo 31 no Brasil, 7em Portugal e 3 na Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017. Seus escritos estão compilados na página no Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. Também faz ‘resenhas afetivas’ de livros de autoras e autores amigos, na página do Facebook “Minha lavra do teu livro”. Possui textos publicados em diversas revistas e blogs eletrônicos. Atualmente também publica, como autora e colaboradora, a convite da editora Chris Herrmann, na revista eletrônica ‘Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte’ (www.sermulherarte.com).
***
VENTANIAS
Aconteceu tão rápido.
Dei por mim naquele breu
bem ao redor da primeira lembrança,
eu, sentada na velha escada de madeira,
olhando lá fora
– um verde respingando folhas e galhos e vegetação rasteira –
era no fundo da casa
a porta da cozinha em duas metades,
eu, sentada na velha escada,
recém-erguida de um tombo que me trouxe à vida.
Depois, entre as bugigangas da memória,
um escuro separando o resto de lampejos das lembranças
– a outra casa, o canteiro de morangos, o canteiro de abacaxis,
meu pai carpindo o mato,
e o ribeirão cortado ao meio para o caminho das águas –.
De repente, mais uma casa de infância
no tênue fio de claridade vindo de longe,
no tempo alcançando a vidraça
– as caixas de mudança, um poço coberto,
um grito de mãe chamando a filharada para o café –
a vida sendo desembrulhada e disposta
em cada lugar daquela casa habitada,
aquela casa para sempre marcada
– como um selo derretendo a parafina vermelha,
e lacrando o envelope com um tanto indescritível de memórias que a gente pretende nunca esquecer –.
Aconteceu tão rápido.
O tempo passado, prensado, amassado,
nem sempre pensado,
e a gente assim,
economizando alegrias raras
para futuros imprevistos e descartáveis,
a gente somando saudades que hoje despencam atrevidas dos olhos molhados.
Nessas horas extras,
quando a noite se torna toda senhora de si,
é que a gente se dá conta que a vida é quase sempre úmida
– das dores, das iras, das paixões desmedidas, dos desejos insanos,
dos amores perfeitos ou perdidos ou desfeitos ou contidos,
das felicidades miúdas, recortadas uma por uma,
e colecionadas no álbum secreto do coração –.
Aconteceu tão rápido.
Dou por mim e tudo aqui reverbera.
Quase sempre esqueço que não tem outro jeito
– viver é tão tênue como uma nuvem ligeira –
é preciso cuidado: os ventos se movem em qualquer direção
[da próxima vez haverei de trazer uma bússola]
– a vida é quase sempre inundação –.