N.G. por V.d.C. – Por Valéria del Cueto
Valéria del Cueto é jornalista e cobre o carnaval do Rio de Janeiro há 20 anos. Ela é autora da coluna “Crônicas do Sem Fim”, com publicações a cada quinzena, sem dia fixo. Além de jornalista e fotógrafa, também é gestora de carnaval.
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N.G. por V.d.C.
Valeria del Cueto
Conheci o cara na praia. Num dia nublado em todos os sentidos. Marcamos uma reunião no “escritório principal”, frequentado por Jorge e por mim, nas areias do canto do Leme. Olhando as ondas, sentados numa canga estendida na beira do mar e falávamos de “negócios”, quer dizer, propostas em estudo já que de concreto não havia nada. Eram dias de espera.
Praia deserta e poucos surfistas apesar da água quente e de um mar encarpelado pelo vento. Dos barraqueiros que se alinhavam apertados, demarcando seus valiosos territórios nos finais de semanas de sol forte de verão, só um insistia. As cadeiras alugadas pelos únicos ocupantes do latifúndio praiano, além de nós, impediam o desmonte da estrutura de plástico que protegia as mercadorias de Seo Luis.
A vagabundagem
O papo começou quando um deles levantou-se e se aproximou querendo saber as horas. Me lembro que era quinze pro meio-dia. Os rapazes eram três, dois negros e um mulato, acompanhados de duas moças. Uma morena e outra loura oxigenada. A cena não havia me chamado a atenção por duas razões: estava de frente para o mar meio de costas para o grupo e em dias como aquele costumo me desligar da vizinhança. Prefiro ficar olhando as ondas a prestar atenção no que acontece em volta.
Este dia, mais do que nunca, o espetáculo que me atraia tinha elementos irresistíveis: mar subindo, ondas rebeldes e uma placa que indicava o local em que a correnteza estava mais forte, exatamente na frente do ponto em que estávamos. Pra melhorar, havia cardumes imensos dando sopa no mar de Copacabana e algumas traineiras arrastavam suas redes. Volta e meia uns peixes marotos pulavam na água indicando o movimento dos seus pares. E lá iam os barcos na direção indicada por eles pelo tapetão acinzentado, reflexo do céu, que ficava cada vez mais cor de chumbo.
A conversa de trabalho rolava animada, interrompida somente por observações pertinentes sobre as atuações mais emocionantes dos surfistas nas ondas, quando um dos caras perguntou se tínhamos fogo. Voltamos aos assuntos da pauta, continuamos mais um pouco e, novamente, queriam saber as horas. Eles definitivamente não eram do pedaço. Não estavam ligados no fato de que existe um baita relógio no calçadão estrategicamente colocado. Logo ali. Não tinha que perguntar a hora, era só olhar na direção certa.
Diante do novo horário informado as moças levantaram acampamento sob protesto da galera. Ficamos só nós, os três rapazes, o barraqueiro e seu assistente na areia. A praia era toda nossa. E os caras estavam aproveitando. Noves fora as minas, transformaram-se em crianças. Correndo na areia, dando saltos mortais, curtindo a praia como nós, moradores do trecho, não costumamos fazer. Apesar de detestar farofaria, confesso que entendo e admiro quem consegue interagir no espaço: rolar na areia, se enterrar, jogar água e se atirar no chão. Praia, pra quem não tem a manha, é um espaço irresistível e passível de formas de utilização estapafúrdias e inimagináveis.
Chegança
Enquanto os ambulantes recolhiam seu material, o mulato se aproximou. Conversa vem, conversa vai, perguntei de onde eles eram. Aí, chegou o segundo. Informou que vinham de Nilópolis, mas que ele morava na Ladeira Tabajaras, em Copacabana. Quer dizer, seu irmão morava lá. Com trancinhas embutidas, búzios nas pontas, porte e jeito de atleta, ele me explicou que lutava boxe e kickboxe. Quer dizer, não estava treinando no momento mas, já havia, inclusive, competido. Que não era igual ao irmão, este sim, treinava todos os tipos de artes marciais, encanado em ganhar sempre, mas que era amarrado numa competição. Que não gostava de futebol, mas era chegado numa luta. Que, na verdade, estava morando na Tabajaras há apenas dois dias. Quem morava lá, realmente, era um outro dos seus seis irmãos. O resto estava espalhado por ai.
O mulato, a esta altura, já havia trazido uma das cadeiras para perto e entrava no papo animadamente, dizendo que eu era a cara da sua professora da quarta série. Igualzinha… Me chamava de senhora. Quando pedi que me tratasse por você, disse que não adiantava que me vendo lembrava da antiga professora da escola da Penha e, portanto, era senhora mesmo. Não deu pra protestar, diante deste argumento. Fiz uma gracinha, dizendo que esperava que pelo menos ele tivesse boas lembranças desta tal professora…
O terceiro rapaz ainda ficou um pouco à distância mas, finalmente, se juntou a nós. Lembro que eu tinha perguntado em que ano eles estavam, se ainda estudavam. O mulato me disse que foi até a oitava série, mas que não chegou a completá-la pois largou a escola pública, na Penha, no meio do ano. Antes de completar o primeiro grau. O atleta, parou na sétima e o outro também. Todos tinham 21 anos. Nenhum deles trabalhava. (Claro, se trabalhassem, o que estariam fazendo na praia em plena quarta-feira no meio da tarde…)
Achei que tinham em comum o fato de serem de Nilópolis. Na verdade, dois deles tinham se conhecido neste dia mesmo, antes de tomarem o rumo da Zona Sul…O elo de ligação era o mais calado deles. Era amigo dos outros desde criança, mas eles nunca tinham se encontrado antes. O mulato mais safo esclareceu que, na realidade, não era de Nilópolis, mas, sim de São João, calculo que de Meriti.
Quem era quem
O caladão é o único que, segundo meu parceiro me disse depois, não havia caído na água, entrado nas brincadeiras que rolavam entre a galera, limitando-se a ficar sentado na areia, era N.G. Neguinho. Seu nome verdadeiro, Jeferson. O mulato, F.A., de Fabio, e o atleta, MG, de Magro, seu nome era Valdir. Quando Valdir se levantou atrás de uns biscoitos, N.G. ocupou seu lugar na cadeira vaga. Foi o sinal para que os outros dois também trouxeram as suas cadeiras alugadas que estavam mais distantes. O papo estava formado. Primeiro, sobre o que faziam da vida.
M.G. disse que conhecia o pedaço pois já havia trabalhado como segurança das barracas na feira de artesanato do Lido e contou o caso de um playboy que escolheu uma pulseira que custava R$ 15 e só queria pagar cincão por ela, obrigando a dona da barraca a chamá-lo para tomar uma providência. Disse, que quando chegou no cara que já estava saindo fora “na moral’, ele empurrou os cinco reais no peito dele, avisando que era aquilo que a pulseira valia e o quanto ia pagar. M.G. contou que não teve outro jeito, a não ser tomar a pulseira do cara e jogar o dinheiro em cima dele. Afinal, segundo a artesã, o que o sujeito queria pagar não cobria nem o material gasto pra fazer a peça. Assim era a vida…
Eu disse pra ele tomar cuidado, pois em todo lugar existiam turmas e panelas, e valia a pena ele fazer a política da boa vizinhança. Ainda mais sendo novato na área. Nãao custava nada manter a atitude correta. Assim e que era a vida…
E fez-se o verbo
Pura ilusão, era bem pior. Muito pior. Foi aí que N.G. resolveu sair da casca e se manifestar. Pra dar o seu exemplo. Ele começou perguntando se dava pra imaginar que sua mãe tinha morrido há duas semanas atrás e arrematou afirmando conformado que agora ele estava largado no mundo.. Achei que era exagero. Jorge argumentou que a coisa não podia ser tão ruim assim.
N.G. então começou nos contar, meio aos trambolhões, sua história. No momento, estava sendo expulso da casa em que morava quando sua mãe era viva, com seu padrasto e seu meio irmão, ainda criancinha. Com a morte da mulher, o viúvo voltou para a casa do pai, levando o irmãozinho e ele, que nunca tinha se dado muito bem com o marido da mãe, (e, pelo tom de voz dava pra ver que ele estava falando a verdade e tinha sua parcela de culpa na situação) recebeu cartão vermelho, já que a casa pertencia ao pai do cara. E era pra ontem. Era largar ou largar.
Com sua única irmã de verdade não podia ficar. Ela era casada, tinha marido, filhos e coisa e tal. Ele deu a entender que não tinha muito boa fama junto aos familiares. Contou que estava cheio de culpa, pois achava que a mãe havia morrido devido a seus desvios. “Mas, na moral, fazer o quê, tia? Lá só tem sangue ruim. É difícil ficar na linha cercado de ruindade por todos os lados”.
Não vou tentar aqui repetir o dialeto e as gírias usadas pelos três amigos. Só gravando e reproduzindo literalmente, o que eu ainda pretendo fazer. Numa determinada hora da conversa, N.G., vendo que em alguns momentos eu tinha dificuldade em acompanhar sua truncada linha de raciocínio, desculpou-se dizendo que falava como todo mundo da sua área, pois se não fosse assim, ele que seria um estranho. E o importante era ser entendido, pra ser respeitado. Ele visivelmente se esforçava para tentar se expressar de forma mais clara, mesmo sabendo que não estava sendo cem por cento compreendido. Para tranquilizá-lo expliquei que curtia muito conhecer os dialetos que circulavam na cidade. Atualizar meu conhecimento…
Por minha causa
E voltou a falar do sentimento de culpa pela morte da mãe, dizendo que sentia culpa de muitas coisas, ate de não ter coragem de vê-la morta, dentro de um caixão. Por isso, não tinha ido ao enterro. Preferia lembrar dela viva. Mas que quando lembrava dela viva, vinha na sua cabeça apenas a quantidade imensa de preocupação que causava a ela. Uma mulher que usava “amuletas” por causa de um problema na perna provocado num acidente de carro que sofrera anos antes. A palavra culpa era repetida insistentemente.
Neste momento, os amigos olhavam meio constrangidos sem querer interromper N.G., enquanto lágrimas corriam pelo seu rosto. Poucas, mas definitivamente sinceras… O que dizer nesta situação? O cara levantou os olhos que se fixavam nos montes de areia que ele juntava e derramava entre as mãos, como uma ampulheta e tentava disfarçar, olhando o mar a sua frente, enquanto as lágrimas brotavam e eram, finalmente, discretamente aparadas pelas mãos sujas da areia que corria como o tempo.
Saiu qualquer coisa que pudesse deixar claro pra ele que a mãe podia ter morrido mas que, seja lá do que fosse – e não tínhamos coragem de perguntar a causa do óbito – ele, com seu comportamento, certamente não poderia ser o motivo direto da perda que sofrera. Para nosso alívio, os amigos concordaram imediatamente e fizeram coro com nossas ponderações. N.G. então continuou sua historia, dizendo que isso não mudava o fato de que ele estava sim, sozinho no mundo. E cheio de culpa.
Aptidões
E assim voltamos ao encalacre inicial e aos argumentos de sempre. Que ele tinha amigos, pelo menos aqueles que estavam ali, e tinha que procurar alguma coisa para fazer e algum lugar para morar. Mudamos de assunto, perguntando o que ele sabia fazer. Falou que, na escola, por incrível que pareça, gostava de matemática, mas que não via muita aplicação prática no dia a dia. Que gostaria de voltar a estudar mas não conseguia ficar quieto, prestar atenção. Que sabia mesmo era “modelar”. Fiquei imaginando o que…
Disse que fazia figuras como o Mickey, Tazoos, Pateta , riscos e tribais. Quando ele falou nos dois últimos estilos, tentava me situar. Tatuagem? Não podia ser, ele não tinha nenhuma. Ai, ele disse que era ele mesmo que se “modelava na frente” e completou afirmando que ninguém botava a mão na sua cabeça a não ser pra modelar na parte de trás. M. G. e F.A se empolgaram, aliviados com a mudança de assunto e assinaram embaixo do talento do amigo. N.G., pra provar capacidade, alisou um pedaço de areia e desenhou um Mickey Mouse. No fim foi taxativo: era mais fácil fazer os desenhos com gillete nas cabeças raspadas com “máquina um” dos amigos, do que com a ponta do dedo nas areias do Leme. “E mermão, morrer de fome tu não vai. Arruma uma gilete e levanta um troco modelando cabeças por ai”, sugeriu alguém. “Num caso se sufoco total, dá pra levantar algum.” Mas toma cuidado pra não pensarem que a gilete e pra assaltar, falou?”, arrematou o outro, meio na graça, dando o toque na responsa.
Lembrou ter trampado no camarim de vários shows, numa empresa de eventos. Havia chegado lá pedindo um trabalho qualquer na montagem de um show na praia. Mandaram ele descarregar o material, ajudar na montagem do palco, fazer uma coisa aqui, outra ali. Outros espetáculos vieram. Com a doença da mãe, perdeu o contato com os caras e a equipe tinha sido “fechada”. Botaram outro em seu lugar. Jorge sugeriu procurar um amigo, para ver se podia ajudar de alguma maneira. Ele, o amigo, e dono de uma empresa de eventos e sensível a causas como a de N.G. alguém que, definitivamente, precisava de uma luz.
Saia justa
Por que isso, naquele momento, N.G. não tinha. Seus olhos rasos d’água, não conseguiam segurar as lágrimas que rolavam pelo rosto. Os amigos, na maior saia justa, visivelmente se dividiam entre a velha máxima de que homem não chora, que os fariam desprezar a fraqueza manifesta de N.G., e o alívio por não estarem na situação do outro, o que permitia uma certa dose de compreensão com os sentimentos do parceiro. Melhor ainda porque não precisavam consolar o cara. Jorge e eu fazíamos este papel com argumentos mais adequados. Sem muito sucesso. Dava pena, muita pena. Porque o choro agora era incontrolável. O mar foi sua saída. Era hora de enfrentar as ondas. E la foi ele. Só lavou o rosto e deu um mergulho rápido.
Hitchcock
Nós, que ficamos observando, não tínhamos muito a dizer. Os pombos faziam a festa esfomeados ciscando na areia em busca de alimentos deixados pelos poucos visitantes do dia. Se amontoaram no meio das coisas dos rapazes, largadas no lugar em que estiveram sentados antes de se juntarem a nós. Eram muitos e brigavam pelas migalhas e farelos dos pacotinhos de biscoitos que, vazios haviam sido largados nas redondezas.
Reclamei que, largando os saquinhos, estavam sujando a areia, tão limpinha naquele dia de pouco movimento. M.G. me disse pra ficar fria, pois ia ser muito pior se o lixo fosse enterrado, como alguns costumavam fazer. O deles pelo menos estava fácil dos garis acharem. Afinal, os caras tinham que trabalhar ou não tinham? Os pombos também precisavam comer, ou não? Desisti de argumentar. Os saquinhos ficaram onde estavam. N.G. voltou no meio da conversa sobre a necessidade sobrevivência dos pássaros e citou um filme que havia visto, um horror, em que os pássaros atacavam as pessoas. Um filme velho, segundo ele.
Sem rumo…
Jorge voltou a levantar hipóteses para ajudar N.G. e eu perguntei como encontra-lo, onde ele morava. Pra que! Burra, coloquei o cara novamente diante de seu pior problema. Ai veio a nova bomba: ele havia contado que trabalhou na mesma feira de artesanato do Lido. Primeiro, ajudando descarregar o caminhão que trazia as estruturas das barracas, passando a ajudar na montagem, mais tarde como segurança e depois tomando conta da barraca de um argentino. Este seria o seu contato, já que não pretendia voltar para a casa, em Nilópolis.
Como? Se a montagem da feira só aconteceria dois dias mais tarde, perguntei. Sua opção era ficar nas ruas de Copacabana. Segundo ele, ainda tinha onze reais. Daria cinco para M.G. e F.A. voltarem pra casa e sobrariam seis para “segurar” até a noite de sexta-feira. Protestos generalizados. Que o cara tava louco, que ia ficar vulnerável. Podia ser preso, a polícia tava dando em cima, a bandidagem podia achar que era concorrência.
Para cada argumento, N.G. tinha uma resposta. Totalmente desesperançada, mas uma resposta. A que mais me doeu foi quando ele disse que era sem chance cair numa roubada. Pior é que “tinha uma alma boa”, era “puro de coração, como um garotinho de dois anos”, só que a vida tinha colocado ele diante de situações que ele não sabia como resolver. Agora, estava numa destas. Querendo ficar do lado do bem, “por que o bem sempre vence o mal”, então, era do lado do bem que ele faria tudo pra ficar. Mas estava difícil, muito difícil.
Ponderei com ele que, em alguns momentos da vida da gente, parece que não existe saída, nem solução. E que, nestes tempos de negrume total, devíamos apenas resistir. Da melhor maneira possível, sem se abrir a guarda. Ficar ali, largado na orla, era se expor demais do jeito que ele estava. Lembrei dos documentos. Que ele disse que não estavam com ele.
…sem prumo…
Este, por sinal, era um grande empecilho aos seus parcos planos de vida: tinha 21 anos e não tinha se apresentado ao exercito. O RG, sua mãe havia “batido” no bolso de uma bermuda que ela tinha lavado um tempo antes. De documento, somente uma xerox já meio gasta e o registro de nascimento. Ainda guardado nas coisas que restavam de sua mãe. Na casa de onde, garantia com a voz embargada, já tinha saído. Ele chorava de novo e desembuchava cenas que, víamos nos seus olhos, estavam passando diante dele.
Foi assim que contou a historia da doença da mãe. O acidente de carro deixou ela sequelada. O defeito numa das pernas que fez com que precisasse das “amuletas” para se locomover. O tumor que a levou a fazer radioterapia, antes da prometida quimioterapia. A radiografia queimou a barriga dela por dentro, que foi e voltou várias vezes dos hospitais, precisando em uma injeção que tirasse sua dor, cada vez maior. Até que, numa crise, foi internada no Hospital da Posse, antes do carnaval.
Nos dias de visita o horário era dividido entre ele e a irmã. Só podia entrar de dois em dois. Na quinta feira depois do carnaval, ele foi visita-la com a namorada. Na hora de ir embora, já atrasado para dar a vez para que a irmã entrasse, deu um troco no peito que o fez voltar da porta para perguntar se a mãe queria que ele trouxesse uma foto do irmãozinho mais novo. O padrasto não ia vê-la fazia tempo e, quando ia, não levava a criança. Se a mãe tinha saudades, uma foto poderia ao menos aliviá-la. “Ela riu pra mim, com o olho cheio de dor e disse que era uma boa ideia. Eu disse que, então, traria também uma foto minha, dessas fotinhos de documento, que ficava no móvel da sala lá de casa. A minha e a do meu irmão menor. Do lado de fora, minha irmã esperava mas do meio do corredor, voltei de novo. Parei na porta e fiquei olhando ela. Fui e voltei umas três vezes e só aí saí. Foi a última vez que vi minha mãe. Já disse pra senhora que não quis ver ela morta. Prefiro lembrar de quando estava viva, mesmo que seja naquela cama de hospital. Não precisei voltar pra levar as fotinhos…”
…sem lugar!
Meu coração doía. Aquela desesperança toda se refletia naquele lugar de paz. A praia, o oceano ali na frente, a Pedra do Leme que me viu crescer de um lado, Copacabana do outro. O mar revolto espelhava o dia que passava pesado por cima dele. As nuvens cada vez mais negras apenas confirmavam a história de N.G. e nossa incapacidade de ajudá-lo se comprovava a cada saída estudada e rapidamente descartada. Não tem jeito, ele insistia.
Leva-lo pra casa? Alimenta-lo? Encaminha-lo? Um desconhecido, tanto pra mim como para todos os que estavam ali em volta dele. Se os amigos não o abrigavam, como eu poderia fazê-lo? Minha solidão sempre teve um preço e parte dele e jamais permitir desconhecidos na minha casa. Deixa-lo dormir no pé da minha janela de primeiro andar onde volta e meia escuto o porteiro da noite expulsando gente que procura abrigo? Ia ser o cumulo “adotar” um sem teto especifico no canteiro do prédio que não me pertence…
Pensei na igreja do Leme, a Nossa Senhora do Rosário. Se fosse no tempo de Frei Marcos. O padre agora e outro. No quartel ali do fundo… O Exercito brasileiro mal e mal consegue se sustentar. O que fazer com um marmanjo daqueles? Melhor evitar nãos desnecessários ou chamar a atenção sobre o drama alheio. A invisibilidade, pode ser um item fundamental no kit básico de sobrevivência nas terras de Malboro onde N.G. pretendia ficar.
Jorge, mais objetivo, aventou a possibilidade de falar com seu filho, jogador de vôlei, para ver se não tinha uma vaga de montador e desmontador de uma das redes dos profissionais da praia, lá pros lados de Ipanema. Mas isso, só poderia tentar quando encontrasse o filho, no dia seguinte. Vai pra casa, N.G, volta na sexta…
Mil sugestões depois, ninguém conseguia demover N. G. da ideia de ficar nas ruas. O mau tempo, para ele, ia ser igual a uma destas provas que os soldados passam quando tem que ficar na “sobrevivência”. Ele não tinha feito o serviço militar, mas tinha certeza que aguentaria. Ia ficar por ali sim. Sua bermuda era dupla face, poderia ate fingir que havia trocado de roupa, pra não se sentir sujo. Banho, tomaria no mar.
Os amigos que tomassem seus rumos. Ficariam ele e seus seis reais. Sem documentos. Caso conseguíssemos alguma forma de ajudá-lo, era só encontrá-lo na barraca ao lado da baiana na Feira do Lido, na sexta feira, a partir das seis da tarde. Mas que não procurássemos por N.G.. Ninguém conhecia ele por este apelido no pedaço. Jeferson também, nem pensar. Por ali, seu codinome era Sem Sangue…
O que vira
Nos despedimos dos amigos quando a tarde caia. Cinzenta e triste. Fizemos as últimas recomendações. Que N. G. se cuidasse. Não desse bobeira, evitasse policiais e não se misturasse aos cheiradores de cola, frequentadores da área. Atravessamos a areia em direção ao calçadão sem olhar pra trás. Eu, massacrada pela tragédia não só de N.G., mas dos três amigos: um querendo resistir, mas sabendo-se perdido, outra testemunha da desgraça que poderia ser dele e, o terceiro, certamente já entregue e acenando para N.G. com todas as facilidades diante das quais ele não vai poder negacear por muito tempo.
Tínhamos coisas pra fazer, uma baita fome, e alguma comida em casa. Nada que pudéssemos dividir com N.G. Era pouco. Contado pra menos, eu diria. Mas nosso pouco diante da situação ironicamente parecia um banquete: file mignon com molho Café Paris, quiche Lorreine e Batata Rosti. Rescaldo de um jantar preparado por um “chef” amigo na minha casa, no último domingo. Foi tão pouco que, no final, Jorge raspava o restinho de molho com duas tampas de pão de forma…
Hoje e quinta feira e fazem 24 horas que largamos os três amigos na praia. Chove sem parar, torrencialmente, desde o cair da noite de ontem. Vários lugares da cidade estão alagados. O trânsito está um nó, tem engarrafamento pra todo lado. Gente sensata não botou o nariz pra fora. Pra variar estou nesta categoria. Ilhada, mas em casa. Não consigo parar de pensar em N.G. Nesta tremenda chuvarada, rezo para que os amigos tenham conseguido convencê-lo a voltar pra casa. Por pior que seja a verdade que ele encontre por lá.
Minhas lágrimas se misturam com a chuva que cai no meu quintal do térreo, onde um vaso despencou de um dos andares de cima e eu tento salvar duas vidas: as da plantinha atingida e da causadora dos inúmeros estragos. Chuva fria, que molha a alma e faz adoecer a vida. Tanto a minha como a de “N.G.”, “Jeferson” ou “Sem Sangue”. Chame como você preferir. Melhor ignorar seu sobrenome, totalmente inadequado para sua trajetória. Por que nada dessa história, combina com o “Espirito Santo”, sobrenome paterno que ele carrega, segundo consta na xerox de identidade amassada, apagada e esquecida num lugar qualquer, no meio de outras coisas recentemente abandonadas em Nilópolis…
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Texto de março de 2005. Valeria del Cueto e jornalista e cineasta