Narrativa distópica e conscientização em “O homem binário”
“Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski” é uma resenha de Divanize Carbonieri sobre o romance de Eduardo Mahon. O texto foi originalmente publicado na Revista Sociopóetica, v. 2, n. 20, 2018 (http://revista.uepb.edu.br/index.php/REVISOCIOPOETICA/article/view/4355/2758).
***
Narrativa distópica e conscientização em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski
MAHON, Eduardo. O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.
O romance O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (2017) de Eduardo Mahon, escritor carioca radicado em Cuiabá, é uma distopia futurista. Depois de uma grande guerra, o que sobrou das partes terrestres do planeta Terra foi dividido em continentes com nomes de constelações. A história se centra no Continente de Áries, no 43o ano da nova República, espécie de sociedade altamente controlada por intricados mecanismos de biopoder, que dividem a população entre os geneticamente aptos, com autorização para procriar, e os cidadãos novos sem tantos direitos. Aqueles que habitam os demais continentes em coletividades com menos regulações são chamados de selvagens.
A narrativa, conduzida por uma voz impessoal de terceira pessoa, não parece ter um único protagonista. Inúmeras sequências de fragmentos se interconectam, entrelaçando a história de diversos personagens, a maioria batizada com nomes originários do que é hoje o Leste Europeu. Josef Platek é um programador que tenta vencer a morte, criando a transferência de memórias pessoais para computadores. Ele é ajudado em sua empreitada por sua madrasta Bertha Kowalski, uma imigrante que aprendeu a sobreviver na ordem instituída e fazer o que é mais vantajoso, contrariando muitas vezes seus próprios afetos. Jan Zamoski é o advogado contratado para garantir o verniz de legalidade aos experimentos de Platek. Tamara Voik é a jovem e brilhante cientista encarregada de criar um algoritmo capaz de dar às memórias transferidas a singularidade dos seres humanos. E Magdalena Górecki é uma das funcionárias empregadas para conversar com os clientes da empresa de Platek que já foram transferidos e transformados em arquivos digitais. É em torno desse grupo, ladeado por outras figuras secundárias, que se desenrola a trama ficcional.
Com tantas fragmentações, era de se esperar que a ordem cronológica fosse quebrada, o que de fato ocorre. São três os principais tempos da narrativa: o início das pesquisas de Platek ainda em solo firme, o período em que ele e sua equipe têm que desenvolver seus trabalhos a bordo da Nau Continuum em alto-mar, tentando escapar das regras em torno do uso do sinal digital, e o momento em que, após terem concluído com êxito todas as etapas necessárias ao invento, desembarcam novamente no Continente e fundam uma companhia com o mesmo nome do navio. O efeito conseguido pela interposição constante de cenas com protagonistas e tempos diferentes é um certo atordoamento inicial nos leitores, que podem demorar um pouco para apreender o que se passa e qual é o todo da situação que está sendo narrada. Talvez seja algo semelhante ao que acontece com as pessoas que passam pela neuromigração, termo adotado pela Continuum Co. para o procedimento que realiza. Dessa forma, existe uma correspondência entre a técnica narrativa e o conteúdo do enredo, contribuindo para a coerência interna do romance.
A principal temática envolve a discussão a respeito dos limites entre vida e morte no contexto das novas tecnologias. Platek deseja evitar a mesma moléstia degenerativa que acometeu seu pai, uma demência devoradora de memórias e do controle de músculos e órgãos que os apurados métodos de diagnóstico já rastrearam em seu relatório médico. Portanto, o primeiro arquivo, nomeado de A01PLK, é aquele preenchido com suas próprias memórias, sendo que Platek “passava dezoito horas por dia com a mente plugada aos cabos que conduziam os impulsos elétricos ao biodisco. Para abastecer o sistema, ele se obrigava a produzir lembranças verdadeiras” (MAHON, 2017, p. 39). Contudo, apenas o registro das imagens que já existem na mente não tornaria o computador tão humano quanto a pessoa de carne e osso.
Tamara Voik é, então, a responsável por introduzir no software um modo operacional autônomo, algo que permite que o computador faça escolhas, não levando em conta a economicidade ou a eficiência, mas critérios pessoais, como as preferências de cada indivíduo. Depois de digitar os comandos para que o algoritmo da singularidade se integre ao sistema, a programadora estabelece com ele o seguinte diálogo: “Podemos saber o que está diferente? AGORA NÃO SOU MAIS A01PLK. VOCÊS ME CONHECEM. SOU JOSEPH PLATEK” (MAHON, 2017, p. 118). Para registrar a fala de todos os neuromigrados, é utilizada uma fonte diferente, exatamente como ocorre nesse trecho, marcando visualmente a diferença da voz metálica produzida pela máquina. A seguir, a transmissão completa de Platek para o software é realizada diante das câmeras e televisionada para todo o Continente. Seu corpo finalmente perece enquanto sua mente é transferida para o computador. O procedimento é considerado um sucesso pelos membros da equipe porque a figura holográfica que se projeta da tela se apresenta como Platek e responde às perguntas, levando em conta seu arsenal de experiências. Mas até que ponto se pode saber se o experimento foi realmente bem-sucedido? Como ter certeza absoluta de que o software é mesmo a mente da pessoa que antes vivia num corpo composto por células?
Bertha Kowalski, embora seja a sócia mais empenhada na manutenção da empresa, sente um mal-estar quase indisfarçável diante do aparelho: “Por isso, todas as vezes que saía da cabine 001 [na qual o software de Platek era projetado], parava ao lado da porta e, por alguns segundos, tomava fôlego suficiente para seguir adiante na ronda sem que a borda do olho fosse vazada por nenhuma lágrima” (MAHON, 2017, p. 75). Não demora, e o incômodo também é sentido por clientes e funcionários. A Continuum Co. é chamada de clube dos mortos. Seus contratantes, os neuromigrados, não podem deixar suas cabines e se submetem a um rígido protocolo, estando à mercê das atualizações (e decisões) dos diretores da companhia. Nesse sentido, mesmo que o software represente a continuação do organismo que cessou de existir, valeria a pena permanecer vivo num ambiente tão restrito e controlado? A autonomia inerente à vida humana não teria sido sacrificada em vão?
Na verdade, a sociedade fora da Continuum Co. também é rigidamente controlada, o que permite a afirmação de que há um paralelo entre o macrocosmo e o microcosmo da narrativa. Os que ainda estão em seus corpos também têm uma vida restringida por códigos e severas ordenações. Mas não parece haver uma conscientização a esse respeito. Ao contrário, todos os habitantes do Continente de Áries se esforçam por se integrar o máximo possível nas engrenagens do corpo social, mesmo que isso implique assumir atitudes extremamente penosas. Nisso se assemelham às suas contrapartes encerradas nas cabines da Continuum Co., que, tentando se desvencilhar da morte, acabam determinando, para si mesmos, um destino bem mais terrível. Talvez os selvagens dos outros continentes vivam de uma forma melhor, e o fato de não apresentarem uma genética considerada perfeita não impeça que sejam mais felizes do que os arianos.
Dessa forma, também se imiscui no livro a discussão a respeito da alteridade e das hierarquizações entre grupos humanos. É possível que o desenvolvimento das super tecnologias realmente conduza algumas sociedades a se julgarem superiores a outras. Existe amiúde uma articulação entre a tecnologia e a colonialidade do conhecimento, na medida em que o domínio de uma técnica implica frequentemente a dominação ou, pelo menos, a inferiorização de outras sociedades que não a conhecem. Mas essas narrativas distópicas questionam a pertinência desse modo de pensamento, já que um elevado avanço científico pode não trazer benefícios reais para as pessoas, servindo inclusive para limitar ainda mais as suas vidas.
O surpreendente, em O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski, é que a conscientização começa a surgir justamente nos neuromigrados. São eles que passam logo a questionar a experiência que tornou possível a continuidade de suas vidas na forma de softwares. Platek, por exemplo, faz uma confissão a Magdalena, depois de se apaixonar por ela: “Não sou a mesma coisa de antes, garanto. Eu me lembro de correr pelo campo ainda muito novo, mas não sei como é correr, entende? […] Eu sou um espelho do que fui, uma cópia imperfeita, que nunca deveria ter existido” (MAHON, 2017, p. 190). Ele também demove Jan Zamoski e sua esposa de realizarem a migração de seu filho Adam, há anos em estado vegetativo, para uma máquina, convencendo-os de que seria uma condição ainda pior para o menino. Percebendo que sua existência atual é bastante insatisfatória, para dizer o mínimo, Platek, então, pede a Bertha que destrua o seu software, algo que o protocolo lhe garante. Porém, o título do livro indica de quem é a decisão final nesse romance. É a perspectiva pragmática de Bertha que acaba prevalecendo, são as suas memórias que realmente contam, imprimindo a perspectiva de alguém que fez de tudo para se adequar ao sistema e às suas maquinações.