Narrativas fora do centro e dentro de nós – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros.
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Já disseram que imagem é poder. Tanto a imagem reproduzida por aparelhos audiovisuais quanto aquela projetada em nossas mentes a partir de histórias orais ou escritas se relacionam com projetos de poder, dominação e controle. Desde que nascemos somos imersas em um mar de histórias de amor heterossexual e branco, assim como somos mergulhadas no rio de sangue negro das histórias dos escravizados e do massacre ainda em curso dos seus descendentes. Nas interações cotidianas, nas redes sociais e em outros espaços, pela necessidade da denúncia, nós mesmas estimulamos essas imagens sádicas, adoecedoras para nós e acalentadoras para quem, por não se ver espelhado ali, pode sentir tanto alívio como compaixão.
Recentemente li dois ótimos ensaios de Tatiana Nascimento relacionados a esse tema sobre o qual reflito agora: “Cuirlombismo literário” e “Racismo visual/Sadismo racial – quando (?) nossas mortes importam”. Vi, nas redes sociais, alguma crítica em torno da replicação das imagens da jovem Kathlen Romeu, assassinada pela polícia no bairro do Lins, Rio de Janeiro. Então acredito que haja muito a se pensar sobre esse tema e muito material a ser analisado. De modo geral, repete-se a narrativa do corpo morto, do projeto de futuro interrompido na realidade e na ficção. A ficção explora a dor usando o disfarce da denúncia para exibir o trauma das populações negras. Faz o mesmo com a população LGBTQIA+.
Não que nossas dores e angústias não devam ser reconhecidas como relevantes e apresentadas em textos visuais ou verbais, mas é preciso partir de nós, da nossa estética, da nossa palavra. Penso no livro A casa dos sonhos, de Carmem Maria Machado. Trata-se da narrativa de um relacionamento lésbico abusivo. É uma obra complexa, que faz muito mais do que narrar formas de violência que podem se desenvolver no interior de um relacionamento entre mulheres. É um livro que diz que nossos relacionamentos existem entre sonhos, dores e limitações. E fala sobre o apagamento dos dramas e traumas íntimos vividos por pessoas da comunidade LGBTQIA+, pois nossas dores só ganham relevância quando narradas a partir da reafirmação da violência do opressor – cis-hétero-branco. Uma violência que só teria fim/redenção quando essa pessoa LGBTQIA+ conquistar a aceitação do opressor (ou seja, nunca). É necessário criar formas para sair do enjaulamento desse discurso que “na melhor das intenções” ainda nos mantém invisíveis ou, quando visíveis pela fresta, estereotipadas.
Para sair desse ciclo de imagens de opressão, eu preciso ser embalada por poemas de amor entre mulheres.
Minha amada
Quando mira as estrelas
Pela miríade dos seus olhos mansos
Desperta tanto brilho tanta beleza
Que não se perde em certezas
Só têm dança, alegria, água e amor
E eu não me sinto só na imensidão do céu
Minha amada
Porque sei que ela pensa em mim
E o meu peito se faz paz
E o corpo, e o corpo um vulcão
(Lençóis, Cidinha da Silva)
Preciso me emocionar com a paixão e a desilusão de mulheres negras que desejam criar – filhos, livros, arte – como Denise e Alicia na terceira temporada da série Master of None. Porque gosto de assistir filmes e séries e já me emocionei mil vezes com amores que jamais se parecerão com os que eu vivi. A diversidade de ser, amar, pensar e viver é um processo de sensibilização para o mundo que toda pessoa deveria acessar.
Preciso entender meu medo de que a felicidade de mulheres trans negras seja interrompida a qualquer momento, como quando assisti ao episódio nove da segunda temporada da série Pose. Nesse episódio, para aliviar as tensões da vida, as personagens Blanca, Elektra, Angel e Lulu viajam para a praia. Enquanto elas cantavam no carro rumo ao destino, eu pensava que um policial poderia pará-las e a viagem terminaria ali. Quando elas chegaram à praia, eu imaginei que as expulsariam. Quando foram ao restaurante, eu tive certeza de que não conseguiriam finalizar o jantar. Eu temi pela vida de Blanca quando ela foi a um encontro noturno na praia com o guarda-vidas bonitão. Eu tive medo por elas, porque eu não estou acostumada a assistir mulheres trans vivendo plenamente, descansando da rotina, existindo.
Não me emocionei com Denise e Alicia porque elas encenaram uma história perfeita, mas porque elas encenaram uma história possível, em que duas mulheres conversam enquanto tomam banho de banheira não para alimentar o fetiche cis-hétero-branco, mas para alimentar meu (nosso) repertório de cenas da ficção envolvendo mulheres negras.
Me emocionei com o episódio de Pose, porque o simples fato de aquelas mulheres terem vivido felizes por um fim de semana confirmou em mim o desejo de ver vivas as minhas irmãs. E esse desejo precisa habitar o espaço da nossa escrita e da nossa produção estética, para que a desnaturalização do horror ajude outras pessoas a humanizar suas/nossas existências.