Nascimento das flores por Silvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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O que significa uma mulher preta ser uma artista no tempo de nossas avós? E no tempo de nossas bisavós? Essa é uma questão com uma resposta cruel o suficiente para estancar o sangue.Alice Walker
Ultimamente, tenho lido alguns textos metalinguísticos de escritoras e escritores sobre literatura, criatividade e procedimentos de escrita. Isso porque acho muito importante conhecer os processos criativos de quem admiro. Considero extremamente vantajoso saber como a mente e o corpo trabalham para gerar a obra literária. Muitas obras importantes foram produzidas em momentos de grave crise individual ou coletiva, lembrar disso tem sido um movimento contra a apatia que a realidade quer impor.
A necessidade de saber que não estou sozinha nessa missão de permitir que a pulsão criativa continue vazando para o papel provoca uma pergunta: qual é o sentido da poesia em meio à destruição da vida?
Nessa jornada por respostas, me deparei com “Em busca dos jardins de nossas mães”, de Alice Walker, texto de 1972, cuja tradução foi publicada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas em 2018*. Nesse ensaio, Walker questiona a origem dos escritos e da arte das mulheres negras e fala sobre a impossibilidade dessas mulheres no que diz respeito à arte literária:
Como foi mantida a criatividade da mulher preta, ano após ano, século após século, quando na maior parte do tempo em que os pretos estiveram na América, era um crime passível de punição um preto ler ou escrever? A liberdade para pintar, esculpir, para expandir suas mentes em ações não existia (Walker, 2018, p. 78).
Alice Walker inicia assim uma reflexão sobre a herança artística que essas mulheres nos deixaram. Usando o conhecido texto de Virgínia Woolf, Um teto todo seu, ela lembra que, enquanto a escritora branca defende a necessidade de um espaço próprio para escrever e dinheiro para se manter, as mulheres negras não possuíam a si próprias. Pensando em um contexto mais atual, mesmo para pessoas negras de agora, a dificuldade de ter um espaço de trabalho individual, dinheiro para manter o trabalho artístico e ainda o tempo para produzir as mantém distantes da criação literária.
Mas este não é o fim da história, para todas as jovens mulheres – nossas mães e avós, nós mesmas – não perecemos na selva (Walter, 2018, p. 79)
Apesar de todos os impeditivos, houve mulheres que conseguiram se expressar pela escrita. Alice Walker cita os nomes das escritoras de seu país. No Brasil, temos também mulheres que deixaram herança literária a despeito do racismo, do machismo e de todos os estereótipos aprisionadores dos corpos e das intelectualidades: Maria Firmina dos Reis, Auta de Souza, Carolina Maria de Jesus e outras. Escapar da selva é escapar de um destino imposto pelos outros, é conseguir se expressar, como Walker diz, a partir de sua própria espiritualidade. É também entender a arte para além das formas convencionadas pelo ocidente.
A metáfora dos jardins de nossas mães revela a necessidade de encontrarmos as fontes da nossa linhagem criativa. Walker descobre a sua nos jardins que sua mãe cultivou em cada casa que a família viveu, cobrindo o desmazelo com flores.
Portanto, devemos destemidamente sair de nós mesmas e observar e identificar com nossas vidas a criatividade da vida que para algumas de nossas bisavós não era permitido conhecer. Eu enfatizo algumas delas porque é sabido que a maioria de nossas bisavós conheciam, mesmo sem “conhecer”, a realidade de sua espiritualidade, mesmo que não distinguissem isto além do que acontecia enquanto cantavam na igreja – e elas nunca tiveram a intenção de abrir mão disso (Walker, 2018, p. 82).
Sermos destemidas é o primeiro e o mais importante passo para conhecer a criatividade e fazer dela parte fundamental das nossas vidas. A história da cultura afro-brasileira nos mostra como nossos ancestrais trabalhavam esse conhecimento e de que forma desenvolviam tecnologias artísticas conhecidas hoje por nomes como escola de samba, maracatu, tambor de crioula e tantos outros.
Pode parecer um exagero dizer isso agora, quando vemos tantas obras de autoria negra sendo lançadas e elogiadas. No entanto, esse é o reflexo dos anos de luta dos artistas e intelectuais contra o silenciamento, pela criação de espaços artísticos na própria comunidade negra e também pela abertura de espaço nas casas editoriais que dominam o mercado.
Hoje, quando o mundo que conhecemos se despedaça em queimadas e outras tragédias, vemos nascer uma profusão de realizações literárias de mulheres negras. Se vemos nascerem agora essas produções, é porque antes houve um cultivo carinhoso e sábio dos jardins. Mesmo com um medo enorme do mundo, nossa poesia é um compromisso com a herança que deixaremos.
*Coleção pensamento preto: Epistemologias do renascimento africano (volume II). União dos Coletivos Pan-Africanistas. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.