Nove meses de gestação Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada à professora doutora do Colégio Pedro II e poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Neste ultima coluna do ano, Sílvia nos acalenta com suas palavras potentes e doce. Boa leitura!
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Desde treze de março estou mergulhada no universo das palavras. Aquele foi o último dia em que estive pessoalmente com colegas e estudantes, já com expectativas de suspensão de aulas por causa da pandemia. No dia quatorze, eu lançaria meu livro O belo trágico na literatura brasileira contemporânea. Vivi a tristeza egoísta de ter o evento de lançamento cancelado. Depois vivi uma sequência de lutos coletivos calada, porém tagarelando nos meus pensamentos. Não havia concentração possível para a leitura de um livro ou mesmo para acompanhar um filme. Escrever também ficou difícil até que me veio um par de versos: “Meu corpo nunca conheceu/Uma realidade que não fosse a guerra” e a vontade de fazer deles um poema. Percorri as estantes e comecei a ler poesia, caçando aqui e ali minhas referências. A poesia me ajudou a desaguar as palavras que estavam acumuladas.
Reuni os poemas que andava escrevendo e mandei para algumas amigas, acenando “um estou bem e desejo que vocês também estejam”. Outros textos nasceram depois que retomei a leitura de outros gêneros. Li Assim na terra como embaixo da terra, de Ana Paula Maia e Toni Morrison em A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura enquanto acompanhava estarrecida a cobertura jornalística das mortes de pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil.
Para que livros nesse momento de terror? A quem a poesia serve quando sabemos que iremos acordar com outra notícia que nos matará mais um pouco? Fui novamente a Toni Morrison, escola em forma de escritora, e li O olho mais azul. Leitura extremamente dolorosa e sábia em ensinar que a literatura também enfrenta o horror, o racismo, o fascismo. Diante de telas pretas nas páginas das redes sociais, diante das hashtags, eu escrevi e procurei, nas mesmas redes, os escritos das minhas amigas, suas vozes falando poemas, seus rostos estampados nas câmeras de vídeo durante reuniões, lives e conferências, gritando para mim que estamos vivas apesar de tudo. Li Cidadã de segunda classe, de Buchi Emecheta e A parábola dos talentos, de Octavia Butler para saber que não começou hoje e que vai continuar amanhã, com ou sem vírus. Mas também li O amanhã não está à venda, de Ailton Krenak, no desejo infinito de ter esperança. Audre Lorde me abraçou (sem máscara), a poesia de Tatiana Nascimento me fez abrir mil sorrisos.
Os últimos nove meses me mostraram o privilégio que tenho por poder ter vivido esse período imersa em livros. Livros que li e livros que escrevi. São nove meses gestando esperança no meio do caos. Em alguns momentos, apenas a visão do apocalipse, em outros, a sensação de que é apenas a continuação de inúmeras tragédias que sempre vivemos. Mortes por asfixia causada por vírus, por botas, por tiros. A certeza de que a luta é o antigo e o novo normal.
A literatura ajudou na travessia, foi remo, foi barco, foi vento e tempestade. Abriu caminho, fez companhia ou guardou minhas palavras de raiva, medo e alívio e por isso sou extremamente grata.