Nove textos de Luciana Assunção
Luciana Assunção, Lulupisces, jornalista e publicitária formada pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-graduação em Comunicação com o Mercado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Nasci em Brasília e não escapei à sina de ser servidora pública federal, desconsolada como Drummond. Pisciana com ascendente em Leão, vivi em Sampa e em Nova Iorque, onde a fotografia me pegou de jeito. Meu livro de estreia, As desventuras de uma mulher que levou um susto em sobreviveu, foi lançado pela editora carioca Confraria do Vento, em 2019.
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Posto que é chama…
A vida é a noiva do Frankenstein. Combina coisas e pessoas desconjuntadas num mesmo tempo-espaço. Um prato de self-service no qual você mistura fricassé de frango com salada de berinjela. A eterna insistência de unir o que é desunido por natureza. Murro em ponta de faca. Água mole em pedra dura.
A vida só é possível reinventada. Cabal. Entretanto, viver se desenrola pelas reticências até o ponto final.
Um e-mail sem descrição do assunto. Um assunto sem o conteúdo da mensagem.
Rotina espantosa. Sustos previsíveis. Opostos que se atraem para se repelirem com aversão após o décimo desencontro.
Para morrer basta estar vivo. Mas como quantificar o basta: bastante, apenas o suficiente? Vegetais também são seres vivos. Micro-organismos existem tal qual moscas e ratos. Todos vivinhos da Silva. Pior: barata. Lépida, até avoa.
Viver é muito perigoso: dá ideias, ganas. A vida é sertão árido, abrigo do oásis para quem tem sede de cruzá-lo.
É densa floresta onde se perde o enforcado.
A vida é inesgotável dilema, maior dos temas. Seguida da morte, fiel e indecifrável companheira.
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Boreste
O barco, ainda que ancorado no meio do lago, não se permite a imobilidade. Primeiro, flutua. Ação estoica e altiva para um ente com tamanho peso.
O barco não se conforma com a âncora que lhe tolhe. Faz rotações em torno de si. A popa vira proa e vice-versa.
Se o observador fechar os olhos por átimos, captura outro ângulo. Um barco, portanto, é sempre proparoxítono: átomo e tônico.
Pancetti deve haver enxergado a impermanência quando movia os pincéis de sua arte na areia das enseadas.
O barco, ainda que domado, não permanece estático. Ele sabe que o único destino é navegar.
Nem naufragado o barco é morto. Torna-se casa de peixes. Conta uma história de terror.
Por isso, enquanto se revela e se rebela sobre as águas, à espera de singrar boreste, o barco emite sons fantasmagóricos.
Seres imperceptíveis a olho nu cutucam o casco. Gnomos de guelras batem os pés na quilha sob a lâmina aquática.
Tu, qtiz, clim, grum. Barulhos irreproduzíveis no abecedário dos humanos, capaz apenas de ouvi-los como um mantra de assombrada quietude.
É na tensão entre a custódia e a liberdade do barco, que as sereias ficam alertas: instante no qual decidem se o encantam ou se o ignoram.
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Vórtices
“Agora abria as janelas e portas, escancarando-as para que o ar penetrasse nos aposentos e tirasse de lá minhas ansiedades mofadas e todas as moléstias possíveis”.
(Olga Tokarczuk, em Sobre os Ossos dos Mortos)
Meço a intensidade do frio pelos tímpanos.
É quando percebo que eles existem, estão dentro de mim, cravados num lugar escuro, úmido e misterioso.
A razão de meus ouvidos médios serem sensíveis às baixas temperaturas, nunca soube. Desde criança, quando ganhei a primeira bicicleta e imprimia velocidade pelas ruas da quadra, descobri que o vento gelado ia de encontro ao orifício da orelha como uma nota aguda do violino a tocar no interior do cérebro.
Enquanto os tímpanos hibernam, ainda não se inaugurou a friagem invernal. É um indicativo.
Nem sequer os fones são capazes de impedir a conexão do sopro gélido com as membranas da janela oval. Pensar que não apenas os olhos estão abertos para captar as nuances da vida. Bonita essa imagem: um ovo, a forma perfeita da natureza, para sempre escondida em você. Um paradoxo que por dentro tenhamos essa delicadeza, pois, exteriormente, as orelhas são feiosas, de abano, grandes, amassadas.
Nada há de especial nas minhas, além da possibilidade do adorno. Brincos são acessórios que estimo. Irresistíveis bugigangas.
Na caminhada de hoje, voltei a sentir que o inverno se aproxima. Será mais rigoroso do que os dos últimos anos? Espero que sim, com certa culpa pelos tempos de vírus apocalípticos.
Posicionei as mãos em concha (outra estrutura natural primorosa) sobre os vórtices a sugar as correntes aeradas sibilantes até o fundo do cone auditivo. A vibração da corda esticada do instrumento soava dolorosamente, todavia o calor do tato acalmou o lamento.
Segui revigorada na direção do horizonte gris-alaranjado.
*
Segredismo
Cavalguei um segredo no domingo. Olhando para ele não parecia tão misterioso ou
indecifrável. Por isso não tive medo. Subi num impulso só, me acomodei em seu lombo e pronto. Estava domado. Puxei a rédea de sua liberdade com determinação. Não se pode deixar segredo correr sem direção. Segredo é segredo e sempre pede constrição, comedimento. Se assim não fosse, era caso de livro aberto e não algo que se esconde.
O sol estava majestoso lá em cima. Derramava amarelo que verdejava profundamente a pastagem e a plantação de eucaliptos. Queria me afastar o mais longe possível de qualquer sinal de humanidade para compartilhar aquele segredo só comigo. Um segredo de mim para mim. Corri. Galopei. Em poucos segundos, o chapéu voou. Não teve coragem de viver aquela intimidade. Vermelho esquecido no marrom da estrada.
Segui partilhando meu segredo morro acima. A subida num fôlego só, profundo, bufante. Aos poucos eu não sabia mais onde começava o segredo e terminava a minha pulsação. Monobloco de artérias e suor. Segredo se revelava para mim uma espécie orgulhosa, cheia de personalidade, quase selvagem. Mas não é característica de todo sigilo essa volúpia?
Não é à toa que coça a língua, formiga o corpo, dá tremeliques. Guardar segredo é tarefa hercúlea. Porque ele quer se soltar no vento, no pasto, na ribanceira. Segredo quer ser livre de qualquer cabresto. Quer ser ele mesmo, não outro. Não mais um. Não dois. Segredo que viver sua vida sem dar satisfação e reverência a ninguém. Muito menos aos que não sabem como cavalgá-lo com altivez.
Então me pus ereta, confiante. Gritei: vamos! E chegamos ao topo do mundo. Pelo menos daquele mundo. Éramos nós dois e a paisagem lá embaixo. Nossos corações batiam no mesmo ritmo intenso e confidente. Já nos entendíamos sem palavras ou gestos bruscos.
O oculto clareou e imperceptivelmente me tornei um centauro. Quimera. Segredo abriu seus flancos e me absorveu. Fagocitose. Impossível não sorrir como quem conquistava um império.
*
Vísceras e gerânios
Ouça a velocidade da manhã
no grito da criança
na conversa entre as espécies
bem-te-vi, bem-te-vi…
Nos murmúrios que cessam ao badalar do sino.
O ano mal começou e já se finda.
A agenda esquecida na gaveta.
Sexo matinal maquinal
vísceras e gerânios.
Maritacas, arrulhos,
pombais humanos.
O arranque do carro anuncia
mais um dia
na pandemia.
*
Cultivo amores por taperas, ruínas, escombros. O abandono das casas desabrigadas, antes cenas de algazarras.
Ecoam cânticos ancestrais no que restou da nave de uma igreja de outrora.
Outrora, a prima-irmã da aurora.
A melancolia que habita as paredes descascadas se reconhece no espelho da minh’alma.
*
Jogo de sedução:
atração entre o inefável e o incandescente
Opostos se complementam entre o nascer e morrer.
Ar alimenta fogo
energia geradora:
vida.
Sol e nuvem não se cansam da rotina.
*
Não sou orquídea para viver numa estufa! Me acoplem à árvore mais próxima,
deixem-me ao relento.
Selvagem é o ar que preciso,
pois enlouqueço a olhos vistos.
Preciso fugir do cheiro nauseabundo de putrefação da delicadeza.
Encontrar o recôn(dito) de utopia que um dia esteve no genoma da cidade.
*
Kafka
A chuva se arma para a batalha contra a terra. Convoca os aliados: ar de trovões e fogo de relâmpagos, lançados sobre árvores assustadas.
Sementes e folhas alcançam o solo: passos sorrateiros de gnomos invisíveis.
A barata cruza a calçada em busca de outro abrigo,
apressada.
Nuvens grávidas, pesadas, sentem as dores do parto. Movimentam-se furiosas, em agonia.
A chuva ameaça, se prepara para furar o bloqueio do chão compacto.
Boa parte das vezes, mera bravata.
(sorte da barata e azar o meu)
Luciana de Assunção
Muito honrada de fazer parte dessa tela literária preciosa! Obrigada!
Luciana Assunção