O Bem viver e o reencantamento do mundo – Por Michel Yakini
A Coluna Michel Yakini apresenta crônicas, contos e poemas deste autor paulistano, atuante no movimento literário das periferias de SP.
***
O Bem viver e o reencantamento do mundo
La comunión entre la naturaleza y la gente,
costumbre pagana,
fue abolida en nombre de Dios
y después en nombre de la Civilización.
En toda América, y en el mundo,
seguimos pagando las
consecuencias de ese divorcio obligatorio.
Eduardo Galeano – La naturaleza nos es muda
Nos últimos tempos venho fazendo uma revisão conceitual sobre a forma fragmentada que encaramos a relação entre nós e a Natureza, pois desde sempre somos ensinados que a humanidade é uma coisa e a Natureza é outra. Na maioria das vezes, a Natureza é vista como algo que tá a serviço exclusivo da nossa exploração, por isso vivemos uma relação utilitária com a Natureza mantendo uma relação de superioridade e desprezo em relação a ela.
Existe uma proposta que inclui a humanidade como parte da existência planetária, sem hierarquias, é o sumak kumsay, termo da língua kíchua, dos povos originários do Equador e quem vem sendo interpretado como Buen Vivir, já que sumak se traduz como bonito, precioso e kumsay como vida. Na Bolívia as bases desse tema vem do termo suma qamaña, da língua aymara, e lá é traduzido como Viver Bien. Conheci melhor essa filosofia a partir da leitura do livro O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundo, do equatoriano Alberto Costa,
Baseado, principalmente, nas visões ameríndias, andinas e amazônicas, o Buen Vivir contrapõe o conceito eurocêntrico de bem-estar ou de viver melhor. É uma filosofia em construção mas, de maneira geral, propõe o equilíbrio na convivência entre todos os seres vivos, na forma individual, comunitária e planetária e vem de matrizes de povos que vivem harmonicamente com a Natureza
No Brasil o Buen Vivir se tornou o Bem Viver e tem um termo aproximado na língua guarani, traduzido como nhandereko. O Bem Viver também é uma das bases de reivindicação da Marcha das Mulheres Negras, que acontece anualmente em 25 de Julho, dia da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha, pois essa proposta também abarca o enfrentamento da sociedades patriarcais e racistas.
A partir do livro de Alberto Costa, pude compreender como essa proposta vem sendo incorporada na política constitucional do Equador e da Bolívia e quais são as possibilidades de interpretação e vivência desse conceito como alternativa ao desenvolvimentismo do sistema capitalista e da herança colonial que tem devastado a Natureza e aumentado as desigualdades e violências sociais.
Pra Alberto Costa o Bem Viver permite duas bases fundamentais: reconhecer direitos à Natureza (Pacha Mama) e estabelecer um Estado plurinacional. O autor revela que no Equador “reconheceu-se a natureza como sujeito de direitos (…) uma postura biocêntrica que se baseia numa perspectiva ética alternativa, ao aceitar que o meio ambiente – todos os ecossistemas e seres vivos – possui um valor intrínseco, ontológico, inclusive quando não tem qualquer utilidade para os humanos”.
Já a plurinacionalidade, baseada em direitos coletivos, vem em contraponto ao Estado monocultural, moderno e neoliberal, de base racista e excludente. Segundo o autor o Estado plurinacional “não nega a nação, mas propõe outra concepção de nação. Reconhece que não existe apenas uma nação ou apenas uma nacionalidade. Assume uma nação de nacionalidades diversas que têm convivido em estado de permanente enfrentamento”. Me lembrei do poeta Sergio Vaz dizendo numa live que ele sente a periferia como um país, com formas específicas de viver, com pessoas, artistas, lideranças e intelectuais que representam uma linguagem própria e tensionam as hegemonias.
Apesar de ter como base as matrizes ameríndias, Alberto Costa afirma que estas “não são a única fonte inspiradora do Bem Viver. Em diversos espaços do mundo (…) há muito tempo têm se levantado diversas vozes que poderiam estar de alguma maneira em sintonia com essa visão, como os ecologistas, as feministas, os cooperativistas, os marxistas e os humanistas”. Ele completa observando que o Bem Viver é uma proposta da periferia, justamente por ser oriunda do vocabulário dos povos marginalizados e inferiorizados socialmente e linguisticamente.
O Bem Viver traz uma perspectiva de reencantamento do mundo, já que a separação entre nós e a Natureza, imposta pelas civilizações, religiões e ciências ocidentais e antropocêntricas ao longo dos séculos, nos distanciou do estado mágico da vida e da compreensão da Natureza como um ser espiritual, provido de uma consciência da qual também fazemos parte, a final de contas somos Natureza e podemos nos orientar por uma visão biocêntrica.
Apesar de parecer simples, essa construção é complexa e cheia de desafios, pois envolve o choque de diversas visões éticas e estéticas na construção do Bem Viver e dos Direitos da Natureza. Ainda mais em uma sociedade como a nossa, pautada no privilégio, na competição, no consumo exacerbado e no desenvolvimento reformista, onde nem os Direitos Humanos são um consenso. Alberto Costa afirma que mesmo no Equador, onde o Bem Viver faz parte da constituição “tem-se caminhado por uma trilha complicada no que se refere à aplicação das normas previstas pela Carta equatoriana. Várias leis patrocinadas pelo Executivo contradizem seus princípios no campo dos direitos ambientais e, especialmente, no que se refere aos Direitos da Natureza”.
Ainda assim, o Bem Viver é uma radicalização necessária como alternativa a uma sociedade que agoniza diante de problemas sociais e ecológicos. Há um massacre da vida planetária em curso, e o reconhecimento da Natureza como o ser mais importante que existe e nossa reunificação com essa consciência é um ato subversivo que certamente nos ajudará a encontrar uma saída neste desabamento social e desencantamento com a vida, que mantém a minoria vivendo melhor enquanto a maioria segue vivendo mal em meio as ruínas do desenvolvimento.