O fazer poético e sua relação com a loucura em um poema de Cruz e Sousa – Por Maria Ferreira
Na coluna mensal “Ubuntu” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Maria Ferreira escreve ensaios sobre Literatura Negra, buscando evidenciar aspectos de livros escritos por autores contemporâneos ou clássicos. O título da coluna faz menção ao significado da filosofia africana que diz “Eu sou porque nós somos”, uma lembrança de que as atuais conquistas por espaço e reconhecimento são frutos de uma luta e reivindicações de quem veio antes, que, portanto, devemos honrar quem abriu os caminhos que hoje pisamos e tenhamos consciência de que também estamos abrindo caminhamos na medida em que caminhamos. Uma lembrança de que a conquista de um indivíduo, é, na verdade, a conquista de um grupo.
Maria Ferreira é uma baiana que mora em São Paulo. Graduada em Letras-Espanhol pela UNIFESP. Desde 2013 administra o blog literário Impressões de Maria, no qual dá destaque para a Literatura Negra, fazendo um recorte de raça e gênero. É uma das autoras do livro Vozes Negras (Se Liga Editorial, 2019). Além de poemas, também está escrevendo seu primeiro romance.
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O fazer poético e sua relação com a loucura em um poema de Cruz e Sousa
Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861, com o nome João da Cruz, na cidade de Desterro, atual Florianópolis, em Santa Catarina. Como a Lei do Ventre Livre só viria a ser promulgada dez anos após o seu nascimento, em 1871, e a escravidão abolida em 1888, filho de pai escravizado e mãe liberta, também nasceu nessa condição de acordo com as leis do Brasil escravocrata do Segundo Império. No entanto, foi adotado pelos proprietários de seu pai, de quem herdou o sobrenome Sousa. O privilégio da adoção foi determinante para que houvesse uma mudança drástica em seu futuro, uma vez que pessoas escravizadas não tinham muitas perspectivas na vida. Aprendeu a ler e escrever na casa grande. Cresceu, de certa forma, deslocado: um negro a quem foi permitido vivências de brancos, uma contradição que se fará presente em sua produção poética.
Em 1890 se mudou para o Rio de Janeiro, onde exerceu trabalhos como praticante de arquivista da Estrada de Ferro da Central do Brasil e jornalista, mas não conseguiu um emprego que garantisse sua estabilidade financeira. Em 1893, casou-se com Gavita Rosa Gonçalves, futura mãe de seus quatro filhos. No mesmo ano, publicou seus livros Missal e Broquéis. Faleceu aos 36 anos, vítima de tuberculose, no dia 19 de março de 1898, em Minas Gerias, para onde havia se mudado para tratamento da doença, em busca de um clima melhor. No entanto, por mais que tenha feito para obter reconhecimento em vida, não o alcançou, ele veio somente após sua morte e pela ajuda de amigos que não deixaram que caísse no esquecimento, dos quais, Nestor Vítor é o que mais se destaca. Foi ele quem organizou suas publicações póstumas: Invocações, em 1898, Faróis, em 1900 e Últimos Sonetos, em 1905.
Apesar de ter tido acesso a um ensino de qualidade, só isso não foi suficiente para que fosse respeitado e muitas vezes foi julgado pelo fato de ser negro, como o episódio em que foi nomeado pelo presidente de Santa Catarina ao cargo de Promotor de Laguna, mas os outros políticos foram contrários à sua nomeação, o que o impediu de assumir o cargo, justamente por sua cor de pele.
Mesmo não tendo sofrido diretamente com a escravidão, foi um abolicionista. Sua militância se deu principalmente através de textos nos jornais em que colaborava. Sempre viu na Arte, na escrita, uma forma de igualar as pessoas, fossem elas negras ou brancas.
O Simbolismo coexistiu com o Parnasianismo, movimento que no Brasil teve muito mais destaque do que na Europa. Enquanto que com primeiro, aconteceu o contrário. No Brasil o simbolismo foi encabeçado por Cruz e Sousa e foi um fracasso. Estima-se que o motivo para não ter sido levado adiante foi seu caráter marginal em relação à produção central dos parnasos. Outro questionamento que surge é se o fracasso do simbolismo e seu não estabelecimento como escola literária também não se deu pelo fato do poeta fundador ser negro, mesmo que a fundação do simbolismo tenha se dado em 1893, com a publicação de Broquéis, cinco anos após a abolição da escravatura. Cruz e Sousa teve como inspiração escritores europeus, principalmente Charles Baudelaire.
O Simbolismo é caracterizado pelo uso de símbolos para expressar a subjetividade, com foco no misticismo e sensorialismo. Busca representar a realidade de forma sugestiva e não de forma diretamente realista. É assunto recorrente na poesia simbolista temas universais como amor, morte e religiosidade, em uma composição que apresenta musicalidade, por meio de uso constante de figuras de linguagem. A produção simbolista também se preocupa com a linguagem e apresenta um rigor formal.
O objeto de análise é um poema da autoria de Cruz e Sousa, “O Assinalado”, que faz parte do livro Últimos sonetos, publicado postumamente, em 1905. Neste poema, entramos em contato com o preconceito que os poetas sofrem pelo fato de expressarem seus sentimentos por meio das palavras. Esse poema foi escolhido para análise porque permite duas reflexões: a do fazer poético e a do fazer poético por um negro do final do século XIX, como foi Cruz e Sousa.
Em uma abordagem analítica e biográfica, primeiro faremos uma interpretação de cada estrofe, a seguir nos deteremos na presença dos elementos simbolistas presentes no poema e por fim estabeleceremos uma relação com aspectos biográficos do autor.
O Assinalado
Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a mais extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema;
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrela de ternura.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco…
Na Natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco!
Neste poema o título encontra-se em particípio passado do verbo assinalar, o que faz crer que o eu lírico do poema, foi escolhido para algo e que isso o diferencia de forma negativa das demais pessoas, evidenciado pelo uso do artigo “o”, que o individualiza. Desse modo, percebe-se que desde o título, é um poema que brinca com os símbolos e a sugestão que determinadas palavras podem provocar, característica do simbolismo.
O poema se inicia dirigindo-se à segunda pessoa do singular, tu (“Tu és o louco da imortal loucura”), ou seja, uma pessoa não identificada. Só se saberá de fato quem é o assinalado, no primeiro terceto da terceira estrofe.
Os três primeiros versos da primeira estrofe são cumulativos, só no quarto verso é que surge um verbo de ação: prender. O “Tu” é apresentado como louco, com uma loucura muito grande e que está preso à Terra por essa desventura de ser louco. Na segunda estrofe, iniciada pela conjunção adversativa, “mas”, há uma contraposição ao que foi dito no primeiro quarteto. Por mais que haja a loucura sem fim (“imortal loucura”) e a pessoa, que ainda não se sabe quem é, seja obrigada a viver na Terra, presa a uma desventura muito grande, é essa mesma prisão que faz com que a alma dessa pessoa seja liberta “e rebente em estrelas de ternura”.
Na terceira estrofe, o leitor descobre que a pessoa assinalada é o Poeta, que lentamente vai enchendo o mundo de “belezas eternas”. O uso de reticências no último verso da terceira estrofe (“de belezas eternas, pouco a pouco…”), faz transparecer e enfatiza a velocidade lenta com que se dá seu povoamento. Aqui também se percebe uma correspondência temporal: assim como a loucura é imortal, não tem fim, de modo igual são as belezas que o Poeta semeia, eternas, infindáveis. Ou seja, há a sugestão de que ser poeta é sua sina. O poeta é assinalado porque contribui para povoar o mundo. O poeta é um ser que tem a capacidade de mostrar à humanidade por meio da poesia, o que não se percebe, mesmo que isso o faça ficar deslocado, sem lugar no mundo, visto como um louco.
Na quarta estrofe, a “Natureza prodigiosa e rica” pode ser entendida como as variadas possibilidades de criação que a poesia permite e isso justifica os espasmos imortais, igualmente sem fim, do poeta, que sempre vai estar em busca de um assunto para tratar em seus poemas. Com isso, o poema pode ser entendido como uma metalinguagem para falar da criação poética. O poeta ser tratado como um louco, também pode ser transposto para a vida de Cruz e Sousa, que mesmo que não tivesse reconhecimento por sua produção poética em vida, continuou a escrever e povoar o mundo com seus poemas, mesmo sofrendo, mesmo preso por uma “negra algema”, sua cor de pele, não desistiu da escrita, pelo contrário, a usou para, de certo modo, externalizar sua dor e transformá-la em assunto de sua poesia. Mesmo que não tenha vivido para colher os frutos, pouco a pouco, como no poema, seus escritos se tornaram eternos e houve um reconhecimento do valor de sua obra para as mais diversas áreas de estudo, desde a Literatura, teoria Literária, à História, Ciências Sociais e outras da área de Humanas.
A algema referida no terceiro verso da primeira estrofe, volta a aparecer por meio de um anagrama, também no terceiro verso da segunda estrofe: “Faz que tu’alma suplicando gema”. (Grifos meus). Isso pode significar a iminente libertação de alma que rebentaria em “estrelas de ternura”. (LEMINSKI, 2013). É possível observar ainda, um paralelo entre os termos semânticos com “Tu és” e “A Terra é”, de modo que se entende que o eu lírico se sente como se estivesse preso entre duas realidades que são opostas, como foi a vida de Cruz e Sousa por ser negro, mas ter tido acesso a uma vida que os negros não tinham e mesmo assim, nunca foi bem pago por seu trabalho, ou seja, o oposto, a inadequação, sempre se fez presente em sua vida.
O uso de letras maiúsculas nos substantivos “Terra”, “Desventura”, “Poeta”, “Assinalado”, “Natureza”, faz com que tais palavras se tornem singulares, personificadas, e ganhem uma dimensão simbólica. É interessante observar que no primeiro quarteto “Desventura” é precedida de “extrema”, enquanto no segundo, é “Desventura” que precede “extrema”, ou seja, aqui, exerce o papel de adjetivo, qualificando “Desventura”.
A poesia simbolista é bastante caracterizada pela musicalidade. Nesse poema, o que confere a musicalidade é a presença recorrente de figuras de linguagem, tais como a aliteração: “E rebente em estrelas de ternura”, com a repetição de “t”, “e” e “r”; anáfora: “Mas essa mesma algema de amargura/ Mas essa mesma Desventura estrema”, na qual dois versos se iniciam da mesma forma. Há ainda o uso de antítese, que pode ser observada no verso “Que povoas o mundo despovoado”, em que o povoamento contrapõe ao despovoamento do mundo e hipérbole: “O louco da loucura mais suprema”, “Tu és o Poeta, o grande assinalado”, para passar a imagem de que a loucura do poeta é realmente muito grande. (Grifos meus).
Analisamos o poema “O Assinalado” sob a perspectiva do movimento simbolista, de modo que depreendemos que o principal assunto do poema é o próprio fazer poético, ou seja, dentro as diversas figuras de linguagem presentes, a metalinguagem é a que se destaca porque dá o tom final do poema. É possível também fazer uma leitura que transpassa o fazer poético e tem repouso na biografia de Cruz e Sousa, e seus dilemas pessoais, tendo em vista tudo que ele sofreu e o reconhecimento que lhe foi negado pelo fato de ser negro. No entanto, neste caso, conhecer a biografia do autor não é imperativo para entender o poema em sua completude, mas é algo que garante um maior entendimento do mesmo.
Referências bibliográficas
CAROLINA, Aline; VENTURA, Letícia. Poema O Assinalado. Disponível em: <https://lerebooks.files.wordpress.com/2012/12/fabulasdeesopo.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2017.
SOUSA, Cruz e. Cruz e Sousa simbolista; Broquéis; Faróis; Últimos Sonetos. Organização e estudo por Lauro Junkes. Jaraguá do Sul: Avenida, 2008.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski: 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
REBELO, Ivone Daré. Um canto à margem: uma leitura poética de Cruz e Sousa. São Paulo: Nankin: EDUSP, 2006.