“O lado sensacional da vida é o meu” de Felipe Nascimento
O texto a seguir foi escrito por Divanize Carbonieri a respeito do livro de poemas O lado sensacional da vida é o meu ou livro dos mortos (Patuá, 2019) de Felipe Nascimento. Para adquirir a obra, clique aqui: (https://www.editorapatua.com.br/produto/112564/o-lado-sensacional-da-vida-e-o-meu-ou-livro-dos-mo).
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O lado sensacional da vida é o meu de Felipe Nascimento é, como o subtítulo indica, um livro dos mortos. Nesses versos, um transeunte passeia por uma série de cenários desolados, refletindo a própria desintegração. “(Os mortos se caracterizam pelo seu silêncio, /Pelo esquecimento)” surge como uma máxima que contradiz o eu que se movimenta como que por entre destroços de guerra, uma vez que ele se revela sempre ciente da presença da morte, praticamente em todas as criaturas e objetos que contempla. Também nesse trecho, exemplifica-se o seu uso de parênteses para conter algumas verdades que parecem transbordar do corpo de certos poemas. Aquilo que é demasiado pode ser dito dessa forma, sem que se perca o fluxo de pensamento, numa dicção bem próxima da fala cotidiana.
A cidade como local de experiência da voz poética torna-se algo que, pela própria existência, esmaga qualquer possibilidade de se passar incólume por ela: “Praia Grande é como se um caminhão de realidade passasse por mim”. A cidade de residência do poeta é vista como um turbilhão de acontecimentos tão intensos que não há como ignorá-los ou mesmo decodificá-los dentro de um processo racional de compreensão. Em compensação, São Paulo, que pode se referir ao estado ou à megalópole de mesmo nome, parece ser lida de uma outra forma: “São Paulo para mim tem o peso de um balão”. Tal flutuação de um espaço conhecido por sua pujança (seja o estado ou a cidade) sugere que, para o eu lírico, ele se assemelha às “abstrações das notícias de jornal”, uma realidade distante e imaginária, diferente, portanto, daquela que o atropela como uma jamanta em seu cotidiano. Mas mesmo longínqua, tal configuração espacial não é mais viva. Ao contrário, ela também está carregada de morte, e o afastamento não evita a percepção de sua destruição.
O livro se divide em três partes. Na primeira delas, “O nascimento e a morte do Brasil (questões de identidade, de política e de sociedade)”, o cadáver que apodrece a céu aberto é o da coletividade. Desenha-se, assim, uma imagem que vai na contramão do que declara um dos poemas mais constitutivos da identidade nacional, pois “Essa terra não tem mais palmeiras/E nem canta mais o sabiá”. O Brasil não passa de terra devastada, onde “Minha gente vai morrer com o gosto de plástico/Minha gente vai morrer com o sangue escorrendo até o queixo/Minha gente vai morrer no asfalto (ou nas terras desapropriadas)”. A nação que causa a morte de seus filhos produz cidades que também estão mortas, nas quais “(os proletários não são pessoas, nem tem rostos, só mãos enormes e calejadas)”. Os pobres constituem o despojo mais evidente nesse horizonte de aniquilação.
A segunda parte intitula-se “Uma janela ou uma ausência bem construída”. Nela, o que se enfatiza é o sentido da visão, já que “O mundo conhecido cabe todo nos seus olhos”. Através do olhar, vivencia-se a decomposição de todas as coisas. A visão é, nesse sentido, tanto a janela que se abre para tal universo sombrio quanto um órgão também sujeito ao perecimento: “Um dia um verme comerá o meu olho”. No entanto, talvez algo permaneça:
Mas eu estar aqui, e você aqui
Tem todo o significado.
Esse movimento do diafragma,
Essa voz única,
Não se perderá nas mentes
Haverá solo fértil,
Onde as conexões crescerão.
As conexões entre as pessoas sobreviverão a todas as tragédias e, delas, surgirá a fertilização, a semente para novos tempos, em que “Também seremos os grandes/Do nosso próprio tempo, /Da nossa própria história”.
Na última seção, “O sonho, o ego e o mundo”, o terreno examinado mais de perto é o da subjetividade: “‘não é preciso sonhar’. Disse um homem numa palestra de tecnologia. ‘Hoje, a subjetividade está na tecnologia, pronta e na sua prateleira’”. Como não podia deixar de ser, o sonho também aparece comprometido nesse cenário de devastação. Contudo, assim como acontece no segmento anterior, há ainda alguma esperança. Afinal, “Viver é estar por entre essas coisas não inventadas”. Mesmo que tudo pareça estar tomado pelas coisas tecnológicas ou metálicas, algo fundamental ainda pode existir, justamente no meio daquilo que não foi feito pelos seres humanos e suas ferramentas. Esse parece ser o lado sensacional da vida, justamente aquele que contém o que não foi construído pelas mãos das pessoas, seus sentimentos talvez, que consequentemente, não podem ser tão facilmente destruídos por elas.
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Alguns poemas
Politicamente Bukowoskiano
Meu amor,
O coração é um pássaro,
O cérebro é uma tripa metida à besta.
A boca veio depois do ânus,
É por isso que falamos bosta.
Cada palavra é composta por coliforme fecal sonoro,
Mas logo some, nem notícia.
Esgotos a céu aberto,
Verdades, memórias de constrangimento esquecidas,
Apodrecendo e trazendo doenças.
Essas cidades estão mortas,
Nenhum sinal de lembrança ou de pessoa viva
[que passou aqui
(os proletários não são pessoas, nem tem rostos,
[só mãos enormes e calejadas).
Meu pássaro, vermelho ou azul
Mas anarquista por vocação
Faz ninho num poste elétrico,
Veias pretas da cidade.
Telefone ou internet,
Meu pássaro tampouco se importa,
Ele procura um pedacinho de pão pra comer
“ah! Migalhas de atenção e verdade!
Alimentar meus filhos, ego e compaixão!”
Meu pássaro, às vezes toma decisões totalitárias
Essa pulsão sexual, confundida com amor,
Transforma tudo em tédio.
*
A gestapo está em todas as ruas
Venezuela, Cuba e Coréia do Norte
Nunca fora tão citadas
Cheiro de fritura no ar
Botas enceradas
Punho forte do Fuzil
E zero problemas resolvidos
Toda alegria do verde-louro
Essa flâmula rasgada
Desse país que se estendeu
Pela força da escravidão
Bandeirantes sedentários
Justificando sua própria miséria
Estátuas de heróis imorais mortos
Elas apontam para frente
E não se vê país algum
(Símbolos budistas ressignificados enchem os muros
[de Porto Alegre)
Príncipes de país nenhum
Respondam-me:
A moralidade tem a clava forte?
Tem esse cenho franzido?
Esse sangue
Que os bueiros bebem
Não tem nome algum
A cidade tem sede
E os prédios não tem ouvidos
E cada morador
Sussurra uma palavra de ódio
E os gritos são ignorados,
O morador de rua se funde ao chão
Os relógios digitais afirmam
Que o tempo não curará nada
Que o tempo passará e a ferida se abrirá mais ainda
*
Poeminha da esperança econômica
Quem sabe até o fim do ano, viraremos cadeiras