O poema ensina a cair – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/
***
O poema ensina a cair
para Mila Teixeira
Em uma de suas autobiografias, Bone Black: Memories of Girlhood, publicada em 1996, bell hooks nos conta que, ao ler a obra de Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, sentiu-se salva pelas palavras; que enquanto ela se afogava em palavras, Rilke vinha a salvar. A partir disso, ela escreve: “De pé na beira do precipício prestes a cair no abismo, lembro-me de quem eu sou. Eu sou uma jovem poeta, uma escritora. Estou aqui para criar palavras. Tenho o poder de me afastar da morte — de me manter viva.”
De certa forma, percebo que, ao passo que a escrita pôde mantê-la viva, ela também nos ensina a cair. O poema, acima de tudo, nos ensina a cair. Afinal, hooks é, também, uma poeta. E eu também. As palavras, nesse sentido, permitem a construção de um lugar seguro. Porém, escrever também é um risco e, como diz Mila Teixeira, corremos o maior risco que todo artista: a falta de garantias. Assim, o poema ensina a cair, mas também permite lidar com a queda. Gosto de lidar com a poesia como algo que nos prepara para a morte. Ou nas palavras de Clarice Lispector: “que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.” E talvez eu me identifique com Ângela Pralini, personagem de Clarice, exatamente por isso. Por ter pressa para viver.
O poema, porém, não precisa ter uma função. O poema não é útil. O poema não vai salvar o mundo. E não que já tenhamos tentado. O poema não é tudo isso. Tudo que serve para o lixo serve para a poesia, né, Manoel de Barros? O poema não vai me tornar menos louca. O poema não vai pagar meu tratamento psiquiátrico. Escrever poesia não vai me fazer ter vontade de viver. Pelo contrário, estou com Clarice nessa (ou melhor, com Ângela): escrever é estar pronto para morrer. Escrever é se livrar de si mesmo. Um poeta é, acima de tudo, alguém que pode morrer agora. Não há nada a deixar para trás. Nem mesmo uma utilidade. E que bom! Podemos deixar ir!
O poema ensina a cair. Por muito tempo pensei no que pode significar essa breve oração. Ensinar a cair é evitar a queda ou cair de uma forma melhor? Quem aprende a cair cai menos ou mais? Se cair for como errar, quanto mais cair, melhor será o erro? Se o poema nos ensina, de fato, a cair, por que há tantos de pé entre nós?
Começo a escrever este texto em um típico momento de auto-questionamento acerca de minha escrita e ofício. Afinal, como escreve Adelaide Ivanova, escrever é trabalho, também. Talvez por isso, após começar a escrever poesia pude abraçar minhas próprias contradições, começando pelo fato de estar escrevendo uma prosa sobre o poema. Com isso, reconheço que posso ser tudo e nada. Posso abraçar a mim mesma e matar a mim mesma, porque a poesia inevitavelmente me preparou para isso.
Dividir os parágrafos deste texto por intuição, de modo que, ao final, eu tenha escrito um texto de duas páginas para publicação e leitura rápida. Não quero ocupar o leitor, no entanto, não quero deixá-lo dormir em paz após ler o que escrevo. Nesse sentido, escrevo porque não consigo dormir e para não deixar dormir quem não me deixa sonhar (Francisco Mallmann que disse isso?).
Lembro-me da minha infância, de quando eu caía e ralava os joelhos sempre que brincava com meus colegas, na rua. Cair tantas vezes, certamente, não me ensinou a cair melhor, porque em todas as quedas meu joelho sangrava e ardia para tomar banho. Até que chegou o dia em que aprendi a cair de modo a me machucar menos (as mãos ou somente os braços). Tantas quedas não me ensinaram a cair melhor, mas me ensinaram onde dói mais.
De maneira semelhante, o poema nos ensina a doer de forma mais bonita, para que as pessoas não tenham medo de nossa loucura e egoísmo. Ser artista é, acima de tudo, correr o eterno risco da falta de garantia. Escrever poesia me ajuda a cair em momentos estratégicos para que menos pessoas vejam eu passar tanta vergonha e sangrar em público, mesmo que eu esteja em um quarto sem janelas. E talvez seja por isso que hooks, após ler Rilke, também disse: “Agora, quando eles me dizem que eu sou louca, que se eu continuar lendo todos esses livros, acabarei louca, trancada no asilo onde ninguém me visitará — agora, quando eles me dizem isso, não tenho tanto medo.”
Ao ler hooks, acho que passo a ter também um pouco de hooks em mim. Seja pelo tempo em que estou em contato com sua obra, seja pelo meu trabalho de pesquisa, ou seja pelas angústias compartilhadas. No fundo, com esse encontro, percebo que, aos poucos, estou me preparando para lidar com as quedas que escrever implica. Há quem deseje ser salvo pela poesia; hoje, acho que só quero aprender a cair e a enlouquecer melhor. O poema nos ensina, acima de tudo, que há sempre um risco que devemos correr.