O sim pelo não ou a antidicção em Breviário, de Rafael Tahan – Por Caio Augusto Leite
Na coluna mensal “As armas secretas” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Caio Augusto Leite escreve sobre livros, CDs, peças, filmes e outras obras criadas por artistas contemporâneas e/ou contemporâneos. A palavra de ordem é: ‘hoje’. O título da coluna é uma homenagem ao grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e a seu livro Las armas secretas (1959). A coluna irá ao ar sempre na primeira sexta-feira do mês.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre os 4 romances de Lygia Fagundes Telles, é mestre pela mesma universidade com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013; ficção), A repetição dos pães (7 Letras, 2017; contos), Terra trêmula (Caiaponte edições, 2020; contos); e publicou as plaquetes numa janela acesa a noite não entra (Edição do autor, 2020; poemas), a cicatriz antes da ferida (Edição do autor, 2020; poemas), abismos mínimos (Edição do autor, 2020; poemas), Silêncio de frutas sem verão (Edição do autor, 2020; poemas), 30 poemas de domingo (Edição do autor, 2020; poemas), Aceno para outras ilhas (poemas para poetas) (Edição do autor, 2020; poemas) e outras.
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O sim pelo não ou a antidicção em Breviário, de Rafael Tahan
Ao longo dos dez poemas de Breviário (Editora Patuá, 2020), Rafael Tahan inverte a expressão do gênero que toma como base, o breviário – pequeno livro de orações diárias, que tem como função a manutenção do ato de louvar a Deus incessantemente.
A partir do uso de signos que ao mesmo tempo recuperam o sentindo original do gênero e os subvertem, Tahan cria um antibreviário. É perceptível, por exemplo, como a figura da pomba (símbolo da terceira pessoa da Santíssima Trindade) aparece muitas vezes mutilada por elementos terrenos: as próprias mãos humanas ou pelo fluxo de carros numa grande cidade.
No primeiro poema, “Tabula rasa”, há a percepção de um mundo sem nenhum Deus ao olhar esse céu com “exércitos de nuvens desabitadas” além da premissa advinda do título de que não há um destino fatal já escrito em algum lugar, por isso mesmo esperar “[…] até que / dentro de nós o céu se desfaça”, ou seja, que a própria crença se revele inútil diante de um mundo em que as coisas são movidas não por um desígnio, mas pela mais cruel contingência.
Em seguida, “Alguma fisionomia” expõe um anticriacionismo ao colocar o ser humano não como descendente de Adão e Eva, mas de um primata que antes habitava as árvores. Realçando o ganho anatômico a partir do surgimento dos polegares opositores – um dos momentos-chave na evolução da espécie, pois a partir dele conseguiu-se manipular objetos, saltando em poucos séculos da simples pedra lascada para naves espaciais (movimento bem mostrado no filme 2001, de Stanley Kubrick). E com esse mesmo polegar, retirar a outra asa de uma ave ferida (Espírito Santo, como dito), para dar a ela alguma estética, como que tentando concertar a natureza/religião, ferindo-a, aplicando ideais de beleza/moralidade arbitrários para adequá-la a novos paradigmas a fim de legitimar ações bárbaras (assim como se fez o uso, por Anchieta, da comparação entre o sofrimento de Jesus e o sofrimento dos africanos escravizando para justificar, via cristianismo, a escravidão).
O terceiro poema, “Ton sur ton”, reescreve de forma avessa o mito de Narciso a partir não da contemplação da beleza individual, mas da perda da própria subjetivação: “extinguem-se gradativamente/ os contornos da face”. Também aqui há a figura da ave destruída, ao seguir o chamado da miragem – o reflexo – e assim como Narciso encontra seu fim ao encontrar-se com o falso horizonte espelhado na janela. A destruição vem não da autocontemplação, mas da própria perda de discernimento entre o que é real e o que é falso, a cegueira advinda de certos dogmas.
A seguir, o poema “Curiositas” traz mais uma vez a imagem da ave estraçalhada. Dessa vez diante da “caravana fúnebre/ dos carros”, índice de uma cidade grande em que os mitos são atropelados, devorados por cães famintos e regurgitados em forma de opressão: a religião usada como forma de exploração não só individual, mas também política – vide a crescente participação de líderes religiosos em campanhas eleitorais e a formação da bancada Bíblia.
O quinto poema, “Pollock”, traz à tona a questão da massificação, assim como nas obras do artista do título, os corpos são reificados e plasmados uns aos outros diante da religião cristã (mais uma vez aqui a imagem da pomba atropelada) e perdem seus atributos individuais. Daí o verso final, desgrudado dos demais, nos lembra de que “mudar é opor”.
Depois, em “Rigor mortis”, há a percepção do mundo como encenação que nos distrai. Além desse mundo, teatro do real, nada existe. Renega-se a crença numa vida pós-morte, uma vez que até a flor (sem graça, ou seja, sem alegria, mas também sem o milagre) se desfaz.
“Anátema” representa o Juízo Final, o último crepúsculo, e a divisão entre aqueles que serão salvos e aqueles que serão castigados. Porém percebe-se, a partir dessa dualidade, que mesmo o que seria salvação não é uma libertação, uma vez que os que seguiram as ordens, os que não foram excomungados, seguirão cativos em direção à luz.
O penúltimo poema “Laocoonte” retoma o drama do personagem castigado por desobedecer ao deus Apolo. Aqui a desobediência é necessária, recusando o simulacro e dando voz aos próprios desejos (impassíveis). Ao cometer o ato de atirar a lança contra o cavalo de Troia (o punho armado), Laocoonte é condenado e perde seu lugar no eterno, mas como se curvar diante dos desejos de outrem, se viver é puro desejo? Antes a morte do que a prisão vivida pelos obedientes.
Por fim, em “Novo Angelus Novus”, Rafael retoma a pintura de Klee e a interpretação de Benjamin, mais uma vez o anjo da história diante do progresso humano que tudo devasta, num mundo sem deus, ou com um deus que nada faz para impedir a barbárie (como se fosse necessário mesmo que a humanidade se destrua para que em deus se redima). Esse deus que surge, rompendo suas próprias leis, é o avesso do deus cristão, uma vez que difere da imagem e semelhança (tanto nas ações quanto na anatomia). Proferindo a todos a passagem de Fausto que diz que o sangue é a melhor das tintas – e na lógica judaica sangue é vida –, logo se assina com deus um acordo com a própria vida. Retoma-se a figura dos trilhos (símbolo da maldade humana no holocausto) e em seguida a ida desse deus em direção à luz, deixando pra trás a humanidade, parece inaugurar um mundo de ausência em que somos nós mesmos responsáveis pelas atrocidades que ocorrem.
Assim, o livro de Tahan consegue, a partir da subversão da lógica religiosa do gênero base, criar uma antioração, uma obra que canta ao avesso: uma despromessa, um desmilagre, uma forma de rememorar que deus cessou de existir/agir e que o chamado progresso é sustentado por formas de opressão que se utilizam da figura de deus para justificar-se. Anticientífica, sim, mas só quando convém.
A partir da negação, este breviário ilumina mais do que as engessadas orações carregadas por séculos e que já não cabem mais neste mundo, a não ser que o mundo seja doutrinado para que o dogma continue fazendo sentido. Se mudar é opor, aqui a oposição se fez, pois muito bem se mudou.