O tédio, o prédio e o remédio
O dia nem acabou e a vontade dela já é de se enfiar no quarto e dormir pela maior quantidade de tempo possível. Estar acordada é um pesadelo recorrente que lhe persegue e ela não vê a hora desse terror findar. É torturante o passar das horas, o calor do meio dia, o tédio, o prédio, o remédio.
O tédio, companheiro do dia a dia, que unido ao vazio provoca uma dor descomunal que lhe faz pensar constantemente em transportar esse desconforto do plano metal para o físico. Trancada há meia hora no banheiro, cria forças para entrar no banho, seu corpo, fraco, encostado no piso frio, tenta encontrar o equilíbrio para chegar até o chuveiro. A falta do que fazer preenche todo o tempo, nunca consegue ocupar decentemente o dia. A água morna cai como uma luva sobre seu corpo cansado, mas arde ao tocar os cortes recentes que misturados a outros já cicatrizados contam uma parte silenciosa da sua história.
Não tem medo da morte, nunca teve até hoje, prefere ela a dor e humilhação que sente em sua alma. Há meses não sai de casa pelo simples fato de não suportar o barulho da rua, ele se confunde com o zunido constante em sua cabeça. Fica desnorteada, assustada, quase como se sair do prédio fosse passar pela mais vexatória situação. Em sua casa somente o silêncio, nem a tv é ligada mais. Após sair do banho se arrasta lentamente pela casa, não consegue levantar mais as pernas direito, viver é uma tortura. Todos os espelhos foram quebrados, alguns jogados contra as paredes, outros indo de encontro com suas mãos pequenas e supostamente delicadas.
Afastou sua vida do alcance de todos, não suportava mais vê-los convivendo tão de perto com sua miséria, sua loucura, a ira descomunal que acompanha seu coração. A única pessoa com quem ainda mantém algum contato é com Edgar, porteiro de seu prédio, que dia sim dia não faz as compras de mercado. Geralmente, é ele também que leva notícias suas aos que ela abandonou. Preferiu assim, sabia que ninguém conseguiria conviver por muito tempo ao seu lado. Não se lembra de seu rosto, todas as fotografias foram rasgadas. Nada a
Tenta resistir à vontade de dormir, prepara um chá. Senta-se no sofá, encara a parede branca. Poucas coisas sobraram em seu apartamento, todos os objetos de decoração foram levados para a casa da irmã. Alguns livros jogados no chão, em cima da mesa de centro. Acende um cigarro, sente vontade de beber, todo o álcool que existia foi jogado aos ralos na última crise de raiva. Crises essas que de tão recorrentes fazem parte de sua rotina, há sempre espaço para elas. Não deveria ter.
Lentamente o dia vai passando e começa a esfriar, ela adormece no sofá em posição fetal, como fazia quando criança. Em seu sono agitado, tremula e balbucia palavras como se estivesse conversando com alguém. Acorda já no meio da noite, corpo dolorido pela posição em que dormiu. Caminha lentamente até a cozinha e prepara um lanche, um pouco de suco, sente uma forte sensação de enjoo. Come, mas parece mastigar areia. Nada tem gosto, nada preenche, não mata essa fome. O enjoo aumenta, o mundo gira e começa a chorar. Sente um profundo desgosto por até o simples fato de comer lhe causar tanto mal estar, trazer à tona tantos sentimentos ruins.
Caminha cambaleando como se estivesse bêbada, mas não está. Antes estivesse bêbada, antes estivesse em condições de sair à rua, entretanto ela se vê como um fantasma, alguém por quem só se consegue sentir desprezo, sentimento que ela conhece bem e que queria nunca ter conhecido. Que ao lado da indiferença a fizeram tão vazia, tão incompleta, tão sozinha, como sempre se sentiu, mesmo quando vivia cercada de pessoas. Sempre a mesma sensação de espera, da mãe, que só vinha de vez em quando, do pai, que nunca veio, e agora à espera da morte, que parece nunca chegar.
O remédio, que se esqueceu de pedir para o Edgar comprar, talvez a ajudasse hoje. A dor está mais pesada que o normal, se é que isso seja possível. Sente raiva, da saudade de uma vida que nunca teve, das respostas que nunca encontrou, de ter passado boa parte da sua juventude tentando montar um quebra-cabeça quase sem peça. Seu coração hoje totalmente negro foi soterrado por um ressentimento sem tamanho. O canivete no chão parece ser a saída mais rápida para aliviar a dor, pensa na bebida. Jogada no canto da sala escolhe o melhor lugar, “um lugar onde não exista nenhum corte recente”, pensa enquanto o vazio parece sumir, por alguns instantes. Acende um cigarro, o trago e a dor física lhe proporcionam certo conforto.
Sempre se sentiu sem importância para o mundo, sua existência quase não significava nada. Viveu durante muito tempo numa paranoia, numa construção irreal da vida, onde tudo sempre remetia à ela. Sua realidade não existia, ela também não. Sempre culpada, sem nunca ter sido julgada realmente. O vazio volta mais forte, sente uma pontada no peito, chora alto até perder o fôlego. Grita desesperada pedindo por uma ajuda divina, se bate contra a parede, que de todas as frases que tem rabiscada apenas uma chama atenção: “Sartre dizia que o inferno são os outros, mas quando ele está em você como se faz para sair?”.