Oito poemas de Marcelo Silva
Natural de Porto Alegre (RS), Marcelo Silva é poeta e professor de Literatura e Língua Portuguesa. Mantém o blog Desalinhado e também publica poesia em diversos sites e revistas dedicadas ao gênero. Criou a oficina “A poesia é um atentado celeste” na qual estimula o fazer poético por meio de exercícios que envolvem canções, imagens e trabalho coletivo.
Em maio de 2019 lançará o livro O que carrego no ventre lançado pela Editora Figura de Linguagem.
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Sobreviver, algumas vezes
a toda morte que o corpo carrega::
os abraços
o peito e o pátio da casa.
Sobreviver a deus sem deus
com o que há nos dentes,
pré-molares infeccionados,
a tudo que sobrevier sobre a terra.
A desmedida,
morte bruta, ainda que pacífica,
acima da cabeça silenciosa.
*
O pior há de acontecer.
Irá.
O pior dos piores virá com a baba cintilante do cão.
Virá de muitas bocas e braços,
Um filete de sangue acima da cabeça.
Virá logo após o cochilo, em princípio um balido débil,
Depois faca amolada.
De início mímica grosseira,
Um esgar de dentes arreganhados.
Então, e só então,
A bota apertando o rosto contra o asfalto.
Fiel.
Chafurdados no pior, lodo fumegante bravio,
Lembraremos a luz esmaecida da tarde,
A morna apatia sobre os ombros,
As mãos ressentidas.
E lá no fundo o pior.
Porém, não caberá a nós, não mais, julgamentos
E sentenças. A mordaça atada à boca, silenciosos;
Enfim reconciliados com o pior à sombra de nós mesmos.
*
Lá se vão os pobres, móveis, pretos, mulheres, eletrodomésticos, uma moto, indígenas,
fotografias, uma criança: três, duas, uma geladeira, gays, lésbicas, trans….
Quem os leva?
O rio leva-os, as balas, a milícia, os políticos, colonizadores & colonizados, a polícia, as fobias
sanguinárias. Não só eles, a violência gerada pela violência do estado, a gente de bem
escravocrata, impiedosamente devota.
Levaram a Marielle, um primo meu, um conhecido de infância. Muita gente desconhecida,
muitos anônimos com nomes. Amarildos, Isabelas, Brumadinho também foi levada.
O projeto brasileiro é ferrenho. Mais de 500 anos de extermínio.
*
Atravesso a rua dos dias.
Subo, desço calçadas.
Vejo o palhaço vencido
sem dentes na boca.
É verão, é carnaval
hecatombe.
Os mortos em mim
descem-me os ombros,
dançam a multidão desgovernada,
o samba quadrado,
a vida em festa de morte,
a morte infestada de vida.
Meu passo solitário encontra pé
e pés,
Entra em tumulto e samba
fora de si.
Samba o que ainda será,
o que não sabe que já é.
Samba, promete.
Há de sambar por aí afora.
*
Devolver o barulho à palavra
Ao tempo presente
Desenterrá-la
Devolver a palavra à pedra
O futuro ao esquecimento
Destituí-lo
Trazer os dentes para dentro do mundo
Moê-lo
Devolver o barulho à rua
Aos mortos a saudade
Tudo que já não é
Devolver à vida a possibilidade da derrota
Negar o corpo à máquina
Negar o armistício
O fim do barulho
Negar o fim do poema
E a palavra
Devolvê-la aos tigres
*
Um projeto popular poético
prático
que respeite o
ir & vir, vou ali e já volto
do qualquer um cidadão
seja desprovido de identidade
ou fichado na polícia
com cartão Tri ou sem reais
um qualquer que saiba
o quanto o T6 demora
em domingo de passe livre
inconfundivelmente
Preto
inconfundivelmente
Periférico
milhas distantes do centro
à margem do capital
ainda assim Poeta
*
Um poema que não diz nada:
Tal como os mortos que não sabem dormir
Deixo os dias passarem em solidão
Deixo o sangue parado nas veias e aproveito o calor
Para derreter o mal que carrego no corpo
Talvez pudesse dizer algo das Montanhas do Cáucaso
Das trilhas por lá percorridas
Porém, mal atravessei a fronteira que separa
O lado esquerdo do bairro do resto da vida
Parei ao pé do Morro
Li alguns livros, pela metade
Vivo sozinho, sou preto, sagitário
E talvez um dia imploda como o World Trade Center
Ao final, se me concedida fosse a palavra
Diria às pessoas que coloquem o dedo no cu
Ao invés de na tomada
E recebam um choque
Um choque de cu em alta voltagem
*
Atormentado por uma enorme fome
Comi os fantasmas
E os cães a me morder os pés
Nasci da enorme fome
Da palavra e do sono
Descanso
Dos cabelos negros de minha mãe
Mulher preta a voar
Sobre o silêncio do mundo
Seus vestidos a me segurar
A embalar as estátuas de sal
Ao olhá-la hei de pensar:
E se eu não puder
Fugir dessa poesia branca?
E se eu for a substância última
Do medo que nos conduz?
E quando não der mais
Pra cheirar cocaína
Será que a vida melhorará?
E quando eu for outra coisa
Que entorpeça a língua
Em um idioma que não existir?
Recostado em algum lugar da memória
Cúmplice dos rituais?
A coisa em si estranhada
Da hora e dos relógios dos suicidas
Com a cabeça dentro do forno
Impedidos pelo gás de cozinha
A prosseguir com a poesia
No corpo o tempo escondido
Por isso não envelhecemos
E aos pretos da rua
Quero a dar a cachaça que me pedem
Pois somos da mesma carne
Fogo, Ferro humano em brasa
E por isso
A todos vocês escrevo com fome