Oito poemas de Thamires Andrade
Thamires Andrade é uma pessoa da palavra errante, torta, dita meio sem jeito, que acredita na palavra como existência possível. Publicou Meus Melhores Poemas Eu não Escrevi e Esqueci (Patuá, 2019), e tem poemas em antologias e revistas literárias. É fã de Quintana, Tom Zé e Luedji Luna. A interdição da palavra é sua morte de Antígona.
***
festa
na curvatura das costelas
sinos
movem-se uníssonos balões
pulmões
embala o bumbo vermelho
feito banda
esperam vértebras bailarinas
no peito coxia
diafragma cama elástica
cúpula
pula-pula
diverte ansiosa criança
festa em minha caixa torácica
*
panfleto
se uma moça sorridente me entregar um panfleto
de um novíssimo empreendimento imobiliário
em meio a uma floresta urbana de fios e eucaliptos
te ligo para saber se a sua irmã
aquela dos caracóis
ainda namora aquele cara da televisão
se o relógio da cozinha parar
a uma e quarenta da madrugada
te mando aquela receita caseira
de arnica e erva da esperança
pra tratar das dores nas juntas
se um vizinho pelado pintar na janela
antes mesmo de anoitecer
gravo um áudio de cinco minutos de silêncio
pra nos lembrar que o assoalho que a gente pisa
pode ser o teto de alguém
se eu cruzar com uma velha criança
de cabelos embaraçados pulando
os ladrilhos da calçada sem pisar nas linhas
vou aí levar de volta
seu paletó risca de giz
se eu vir um beija flor de peito azul
rechonchudo em plena amazônia sãopaulistana
te escrevo pra te perguntar se você viu o poema
que eu não fiz pra você
*
pressa
quando era criança encontrei na rua uma pressa, disse mãe, mãe, posso ficar com ela? a mãe disse: não, que criança não devia. ontem de manhã encontrei na rua uma pressa, sozinha, perguntei por perto mas não era de ninguém, nem ninguém viu quem deixou. eu trouxe a pressa pra casa mas eu não posso ficar com ela, eu já tenho três: a pressa de ir, a pressa de chegar e a pressa de voltar, e não tenho como alimentar mais uma.
*
crocodilo & serpente
esperar por um crocodilo com a boca aberta
gigante que venha depois de uma serpente
lhe quebrar todos os ossos engolir a engrenagem
esperar que depois de tantos dias sem sol ainda
hajam vitaminas nas verduras e eu
não seja a criança de ossos de vidro
esperar que depois de ser o útero que formou
tuas partes sólidas e fabricou a cola
dos ossos você venha me pedir a bênção
esperar que o cheio de leite morno
metálico dos ossos recém fervidos
se espalhem por outras atmosferas
esperar que o dentinho de leite preso ao ouro
do pingente me pegue pela mão e chame
vem que eu te ajudo a morrer
*
míope
no pontilhismo
imperfeito
dos paralelepípedos
onde o sol quente
aquece
a barriga do gato
tateio, miopemente, o chão
em busca dos óculos perdidos
ufa!
encontro-os ainda a tempo de ver
nitidamente, enfim
a perfeição sinuosa do bichano
claro como a noite do Tocantins
*
cantiga
ir ao mercado comprar café navegando
pelo rio abaxo
sem jacaré
fazer chocolate para madrinha
na cozinha
puxar o rabo da panela
comer um pote de melado e
um cesto de cará
sozinha
sem namorado
me lavar
me trocar
lavar o pé só se eu quiser e
ir na janela pra
balançar o meu vestido
de sete saias de filó
pra frente pra trás
prum lado pro outro
me atiram paus
mas eu não morro
o copo de veneno lá
em cima do piano quem bebeu
morreu
– de amor
*
pequena lista de fugas para enquanto ouve (mas não escuta) virtualidades tediosas
cortar as unhas dos chineses
encher bexigas com gás até poder voar com elas
varrer o apartamento o corredor as escadas a calçada ir indo ir indo até chegar na praça da Sé
ler os termos de uso de uma rede social qualquer
observar o gato e para cada bocejo ou espreguiçada fazer um pedido
criar pastas com o nome de seus personagens preferidos para arquivar e-mails
costurar o buraco das meias do asfalto dos queijos dos corações
observar o caminhar das formigas que atacam seu açúcar
ler uma má notícia de anos atrás e achar uma bobagem
desligar tudo e ir fumar na janela
*
os pés fora do chão
na primeira série, da janela da sala dava pra ver lá embaixo um parquinho, desativado, enferrujado e trancado. eu sempre achava que um dia a gente ia brincar lá mas nunca fomos. também não tinha coragem de perguntar por quê, afinal faz parte do escopo das crianças ditas boas alunas não questionar. balanças sempre foram minhas preferidas. não é que eu não gostasse do gira-gira, escorregadores ou aqueles brinquedos de a gente se pendurar, mas as balanças elas dão uma liberdade diferente, uma possibilidade de ficar meio à toa vendo a vida passar e sem tantas vertigens. depois que você cresce tem que fazer letras e números, não pode tirar os pés do chão nem a bundinha da cadeira. veja, os brinquedos do parquinho, eles são pra criança experimentar os pés fora do chão, desafiar o chão, o corpo e o ar. mas depois que entra na escola é sentar e copiar. brincar com as letras é o que me restou pra sentir os pés fora do chão e brincar de voar.
(Fotografia [detalhe]: Lúcio Érico)