Os muitos tempos de uma tragédia – Por Caio Augusto Leite
Na coluna mensal “As armas secretas” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Caio Augusto Leite escreve sobre livros, CDs, peças, filmes e outras obras criadas por artistas contemporâneas e/ou contemporâneos. A palavra de ordem é: ‘hoje’. O título da coluna é uma homenagem ao grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e a seu livro Las armas secretas (1959). A coluna irá ao ar sempre na primeira sexta-feira do mês.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013), A repetição dos pães (7 Letras, 2017) e Terra trêmula (Caiaponte edições, 2020).
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Os muitos tempos de uma tragédia
As obras de arte, sejam de qual época, têm quase sempre a capacidade de dialogar tanto com aspectos do presente em que foram criadas como do futuro do qual nem desconfiam que esteja por vir, ou talvez desconfiem, uma vez que tantas coisas na história são cíclicas e se repetem – se não com os mesmos gestos, com as mesmas intenções. Assim, estamos acostumados a ver os textos antigos também como um tipo de memória da espécie, em que atos e tramas são revisitados para tentarmos entender como dada situação, às vezes parecida com a que vivemos, foi resolvida pelos nossos antepassados: seja para repetir seus êxitos seja para evitar reviver seus equívocos.
Não é difícil, por exemplo, ver montagens contemporâneas de tragédias gregas que conversam de alguma maneira com certos momentos vividos por uma sociedade, bem como intelectuais que utilizem tais textos como base para exemplificar suas teorias (como a psicanálise com o complexo de Édipo).
Assim chegamos a Lícidas (Zouk, 2019), de Leonardo Antunes, que caminha na via contrária dessa rota exposta acima para terminar, como em todo círculo, no mesmo lugar a que chegam os textos antigos. O texto de Leonardo é atual, porém escrito como se tivesse sido confeccionado no tempo de um Sófocles, retratando o momento em que a cidade de Atenas se vê mais uma vez diante de uma provação: o exército persa do rei Xerxes bate às portas, colocando em perigo a continuidade da cultura e da civilização gregas.
No centro do drama temos Lícidas, Aristeu e Heterócrates. O primeiro defende a democracia, a participação do povo (ainda que indiretamente, pois este é sempre representado na Assembleia por homens que não são da sua classe) nas decisões tomadas e se apoia no saber científico; o segundo vê a participação do povo como desnecessária, uma vez que os mais aptos é que deveriam governar, baseando-se no poder divino; e o terceiro representa a tirania, uma vez que tem no belicismo e no ufanismo a base de seu discurso, se for necessário eliminar alguns compatriotas para que o bem de toda Atenas se mantenha, assim o fará.
Após discussões que levam Heterócrates a apontar Lícidas como traidor, este e sua família acabam mortos. O sangue dos inocentes é usado como sacrifício aos deuses para que assim a vitória na batalha seja garantida. Ao fim, Aristeu descobre que, na verdade, Lícidas era inocente, mas já não tem voz para se impor diante de Heterócrates, temendo ser também assassinado.
Esta é a moldura da tragédia, escrita como um texto antigo, com suas regras de estilo, ambientação, duração, conflitos e desfecho. Embora com subversões pontuais, esta poderia ser mais uma das peças traduzidas por Leonardo, como Édipo tirano (2019, Todavia), as quais chegam a nós como retrato de um tempo e de um povo. Porém sabemos que a peça foi escrita nos dias atuais, logo os conflitos, por mais que deem conta de falar da Atenas antiga, pois são verossímeis as ações e as justificativas, são antes nossos do que gregos, ou para falar daquela via inversa e circular de que comentei: são nossos e também gregos, sem importar a ordem dos fatos.
Digo isso, pois é perceptível como aspectos da nossa própria história são tematizados a partir de aspectos da história grega – as reformas de Sólon que aboliram a escravidão, mas mantiveram as terras nas mãos dos poderosos reflete-se, por exemplo, no nosso próprio processo histórico, em que, apesar da abolição da escravatura, as propriedades continuaram e continuam de posse dos grandes latifundiários; ou o uso de falsas acusações para conseguir engendrar um poder tirano em nada diferente do que aconteceu em 1964 com o medo do comunismo e mais atualmente com a propagação de fake news nas campanhas eleitorais via redes sociais; ou a dualidade dos que representam a democracia ao seu modo (Aristeu x Lícidas – PSDB x PT), mas que se desgastam e extremizam tanto o embate que permitem o surgimento de um terceiro elemento belicoso-nacionalista que interrompe a dualidade (Heterócrates – Bolsonaro) pondo em risco os valores democráticos – só para citar alguns exemplos.
Se a obra consegue dialogar com vários períodos, é mérito do escritor que conhece a fundo a arte grega e suas minúcias de criação, mas também porque é um sujeito atento ao próprio presente e por ele se vê transpassado no momento de elaboração dessa tragédia – pretérita ou atual, mas de todo modo necessária.