Pandepoesia: abril se despede
“Pandepoesia: abril se despede” é mais uma curadoria a respeito da pandemia de covid-19 e seus desdobramentos realizada por Divanize Carbonieri, com poetas do Brasil inteiro. Ontem o país chegou a quatro mil mortes, espera-se que esse número dobre no próximo final de semana. A curva de contágio continua subindo, sem dar sinais de desaceleração, mas mesmo assim muitas cidades brasileiras relaxam as medidas de isolamento. Covas são abertas, câmaras frigoríficas e sacos para embalar corpos são comprados pelas prefeituras mais previnidas. Ainda nem sinal de uma vacina. A curadoria de hoje é composta pelos poemas de Roberta Gasparotto, Maria Fernanda Elias Maglio, Glauber Lauria, Alexandra Jacob, Lucas Lemos, Fernando Sousa Andrade, Adriana Drih Paris, Malu Jimenez, Guiniver Santos, Lucas Grosso, Eduardo Mahon, José Danilo Rangel, Carlos Orfeu, Wanda Monteiro, Hugo Ribas e Clodoaldo Turcato.
***
(Roberta Gasparotto)
*
Pandemia
a organização mundial da saúde recomenda:
higienize bem as mãos
(moradores de rua lavam as mãos nas poças
– quando chove)
bocas e narizes mascarados
nas ruas devolutas
(moradores de rua sem máscaras,
respiram o ar rejeitado pelos passantes)
semáforos camaleônicos mudam de cor,
sem que ninguém os atravesse
(moradores de rua se perguntam:
onde há gente no mundo, meu deus?)
restaurantes abertos para ninguém,
cadeiras empanturrando os cantos
(moradores de rua não têm sobra de batata frita,
nem ponta de cigarro ainda em brasa)
pessoas morrem, morrem, morrem
o ar rareando nos pulmões
(moradores de rua morrem, morrem, morrem
sem socorro e sem nunca saber porquê
(Maria Fernanda Elias Maglio)
*
CAI COVID
cacos de clássicos desfilam por arames farpados
espadas de Dâmocles
estendidas a outros estados
trânsitos, mortes, breviários
preces ensandecidas enviadas ao acaso
chafurda a choldra néscia
tenta dar fim a tragédia
mas eis que por entre urtigas e mamangavas
por entre gravatás e babaçus indomáveis
abate-se a peste, cai o colapso
da caatinga ao cerrado
queimam corpos
enterram-se anônimas mortes
ausência de deus, ciência falha
e resta aos pobres mortais
espelhos e semelhança de nada
esses cacos de clássicos, que desfilam por entre cercas eletrificadas
(Glauber Lauria)
*
Homem pandemia antiga
Erros, quem nos escuta?!
Poetizar evoca pensar?!
Cantigas de avós ensinam
Mães a lavar roupas e alma
Observam olhos
Alguns brilham no breu
Outros cegos caminham
Sabiás gorjeiam
tico-ticos brigam
Esperança na quarentena
Enjoados de nós – enlouquecemos
Filhos com medo do bicho-papão – pais
Ficar sozinhos não sabemos
Somos nossos próprios inimigos.
Borbulhamos risos loucos.
Matamos, feras bestas, maldita quarenta!
Desgraçados homo “sapiens”
Brincamos com vidas
Temo pandemias, nova ou antiga
Deuses e demônios, ambições e desculpas
Novas vacinas para velhas vidas
descritas em papiros
Anjos tortos, loucos, matamos de sede e fome semelhantes
Homem, pasto, cegonha, lobo manso
Pandemia, enxerga arte marginalizada – salvação
Histeria, prato do dia, nos agita.
Homosapiens, vírus velado.
Mata mais que pandemia
Estupro, machismo, homofobia
Mundo que a tempos vivemos
Vacina para isso e muito mais
Respeito! Me respeite!
Eu te respeito!
Homem indigno, seu egoísmos destrói vidas
Assombros do século XXl
Pensem comigo
Negamos água ao próximo
Nesse tempo tudo seca e a vida
se esvai em promessas.
Sabias minhas avós e suas ancestrais
ao me ensinar:
“Água não se nega”
Salvemo-nos de nossa existência
(Alexandra Jacob)
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quarentena
faz cinco dias que não saímos mais de casa
onde acompanhamos
os números de mortos crescer
pela tela do celular
a fazer campanhas e jogos nas redes sociais
pra enganar o tempo desatento
de onde não vemos sequer
uma alma viva na rua
lembro
ao ver a arte do ilustrador cris
no instagram
porque nos foi renegada mais uma vez a passagem estreita ao museu
lembro em sua arte
os tempos em que ainda não sabia o quanto papai e
eu discordava de tudo
e de quanto parecia mais leve a vida naqueles domingos em que eu
da mesma forma só tinha de entender como senna não iria
perder a corrida
ou fingir ou tanto faz
porque era simples conviver
era possível correr os olhos pela TV mas também pelas ruas
naquela época nem da existência de qualquer vírus que seja eu sabia
era possível paz naquela época
eu achava que sabia
(Lucas Lemos)
*
Dinâmica dos cantos do mundo.
Lá no norte o monge longe do oriente
Falou que o ocidente tem excesso de palavras tristes,
Enquanto no oeste palavras são tiros,
Sempre na TV, o faroeste, a precisão da morte.
Lá no norte a palavra noite são inteiras ourivesarias.
(Fernando Sousa Andrade)
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Lonjuras
Até quase ontem eu estava bem longe das tecnologias.
Pura falta de interesse e aptidão.
Mal acessava redes sociais, plataformas, lives e outras pegadas do gênero.
Hoje pronuncio hangouts meet de quatro a cinco vezes no dia.
Tempos de Home Office pra não perder o emprego.
Até pouco tempo atrás eu estava longe de pensar na morte.
Na minha própria morte.
Hoje, de tanto ver os olhos dos outros se fecharem (para sempre!),
comecei a abrir muito mais os meus próprios olhos.
Mês passado eu estava bem longe de me preocupar com gripe, rinite, sinusite, tosse ou um espirro.
Uma aspirina e um antialérgico dariam jeito em qualquer mal estar.
Hoje sabe-se que não é só uma gripezinha. Não é não!
Até ano passado eu estava bem longe de pensar que o amanhã poderia ser melhor.
Isto porque, diante da insatisfação sobre um presente sistema capitalista mais que selvagem e vil no qual estou inserida… bah! sem esperanças!
Agora, conseguir sobreviver aos percalços desta pandemia torna qualquer dia vindouro.
Absoluto e completamente muito melhor que ontem.
Até umas horas atrás eu achava que as lonjuras faziam parte da vida.
Vida longa ou curta sem muita preocupação com o tempo a se viver.
Hoje cada minuto é imprescindível para se querer viver.
Viver bem!
Que as lonjuras aproximem as distâncias humanas que se criaram ou se acirraram pelo distanciamento social.
Que as lonjuras fiquem longe pra gente poder bem de perto se tocar, se abraçar, se beijar, apertar as mãos e desejar:
– Boa noite, até amanhã.
Que haja amanhã.
(Adriana Drih Paris)
*
(Malu Jimenez)
*
Diário cotidiano
Na intenção de nos acalmar
Na ânsia de segurar a onda
Muitas vezes a sós
Nos demos tapinhas nas costas
E repetimos em sequência mântrica
Um dia de cada vez…
Um dia de cada vez…
Mas de fato nunca o fizemos
O tempo de um dia sempre foi pouco
Pro acúmulo de tarefas diárias
Mecânicas, rotineiras, maçantes
Massacrantes.
E ainda assim repetimos
Um dia de cada vez
Um dia de cada vez.
O pensamento a meu ver
É quântico, é movimento nos cosmos
É formato no Astral.
E assim
de pensamento em pensamento
Estamos aqui… formatamos no Universo
E assim ele nos devolveu.
Agora sim necessário viver:
Um dia de cada vez…
Um dia de cada vez…
Observamos o tanto de coisa a ser feita
numa pilha incomensurável de tarefas paralisadas.
Não mais importantes
Que cochilar ao sol.
Que arrumar as gavetas.
Que lavar os cabelos
sorvendo o aroma do shampoo,
reconhecendo o cheiro
que a gente exala muitas vezes
e não se apercebe
Aqueles alimentos vencidos
que ficaram no fundo do armário.
Será que se aproveita?
Os vegetais azinabrados
amassados,
esquecidos na gaveta da geladeira
por estragar…
o desperdício.
Agora temos tempo
de costurar a meia rota,
De cozinhar vegetais frescos
De olhar nos olhos dos meninos
e ver o quanto eles cresceram
enquanto a gente falseou aquele…
Um dia de cada vez
Um dia de cada vez.
Acordar de manhã
e saber que é sempre domingo.
Mas que domingos
não rendem uma semana toda.
Que a semana feita só de Domingos
precisa criatividade pra não ser monótona.
Sabe emendar o carnaval com Natal?
Você pediu.
Tá pedido.
Não vale arrependimento.
Agora é assumir Ônus e Bônus.
De tudo que se versejou gracejando
e transformou no Universo Real.
No mundo das coisas reais.
Ou este seria mais um
Dos nossos universos paralelos de ilusão?
Eu não sei não.
Eu ando me dando tapinhas nas costas
E dizendo desesperadamente:
Um dia de cada vez
Um dia de cada vez.
(Guiniver Santos)
*
Meditação
Para Ellen Maria Vasconcellos
vários cenários se misturam
concomitantemente
e falam por meio de imagens
diferentes
e complementares
sobre o cenário em que
eu estou
enfrentando a quarentena
o medo e a
solidão
Ellen Maria em Brasília
assistindo top gun pelo computador
taking my breath away
e gravando no Instagram
minha mesa de canto
com meus livros e remédios
empilhados entre
uma garrafa de whisky e uma de vodka
agora vazias servindo de vaso
para minhas jiboias
o calendário marca que é
abril
o mês mais cruel
a rua vazia sob um céu
cinzento
anunciando que logo vai chover
e algumas andorinhas
solitárias
a varanda gelada e mesmo assim
eu balançando na rede e lendo
poesias de Cecilia Pavón
ela também tão
sozinha e resistente
enfrentando a crise
com o outono entre os dentes
como Ellen em Brasília
e eu em São Paulo
como um grande mosaico de
pessoas conscientes da importância
de se isolar
formamos uma galeria
de tipos que prefeririam
estar na rua olhando o céu
e pensando talvez na próxima refeição
em uma receita de bolo
em uma camisa de linho que casualmente
foi vista na vitrina de um shopping
mas não é esse o caso
agora
abrindo nossas vidas por meio de
portas fechadas e transmissões
de vídeo e páginas de poesia
e velhos filmes de amor óbvio
e pela redescoberta dos espaços
da casa e da página
de um caderno escolar
e pela redescoberta das funções
de uma garrafa de vodka
e pela digitação das palavras
mais ou menos gastas
nos engessamos
a muitas ferramentas para construir
algo que não seja só
a raiva contra uma resposta da natureza
à consolidação humana em
espaços antinaturais
outras tantas mais são
as muitas ferramentas para construir uma memória
da qual um dia possamos rir
de alguma forma e também
sentir uma estranha e incoerente
saudades
não é para ninguém entender
o que é isso
que eu estou escrevendo
e não é tanto para lembrar
antes de ser registro
antes de ser saudades
vicio
antes de ser qualquer coisa que alguém chama
por ventura
na mesa da flip
de literatura contemporânea
isso é estar lá
e estando
pela distância de uma página
uma leitura
uma conexão de internet
um pouco mais lenta
já é muito mais do que
as palavras que antes não
entendíamos e que
agora fazem parte de toda uma
geração
(Lucas Grosso)
*
Esse cheiro podre
Que antecipa o luto
Sempre exalou
Das ruas lotadas
Por mendigos que esmolam
Com seus filhos pequenos
Brincando nas calçadas
Por mulheres grávidas
Que deambulam zonzas
No recesso dos semáforos
Por degradados de si
Fumando ilusões
No cachimbo das horas
A morte sempre nos rondou
Ora, que surpresa, meus senhores!
Ela sorri como uma hiena faminta
Cercando gente cansada
Gente que almoça vento
Gente que mora na noite
Gente que vive sem vida
O vírus que somos
Sempre os dizimou
Aos poucos
(Eduardo Mahon)
*
Uma esperança
Me pediram pra falar de esperança,
este dom ambíguo, pássaro e verme,
que a depender da circunstância
ou nos faz voar ou nos arregaça
Só sei dela assim, ambígua,
incerta, luz e sombra, afago e mordida,
mas acho que não era sobre isso,
que não era esse o pedido.
Quando alguém pede pra gente falar
sobre esperança, não quer saber
o que a gente acha da esperança,
quer uma luz, uma faísca.
Por isso é que me perguntei:
será que eu sei sobre esperança
algo que valha a pena acender?
Que é um bom momento pra ter,
eu sei que é, mas tenho a dizer
que a esperança é sempre inútil
em quem espera apenas.
O que mais?
A pandemia tem nos colocado
diante de um enorme espelho,
muitos vão se olhar e pelo horror
de se ver, vão acordar,
Taí uma esperança.
(José Danilo Rangel)
*
Sobre quintais
(diálogo poético entre
Carlos Orfeu & Wanda Monteiro)
os pés tocam esse quintal
rosto de relva e barro
fragmentos de tijolos
pluralidade de silêncios
velhas caixas de leite
com plantas escalando o ar
esse quintal onde a luz
tateia a manga rosada
tateia as folhas mortas
o dorso do besouro
no rosto que é um quintal
é preciso caminhar lento
observando cada parte
mínima: dizer sua grandeza
(Carlos Orfeu)
*
no dorso do besouro
a diáspora do sol
ele sísifo dourado em sua escalada
de subir à leste
para cair feito triste canção
no quintal guardando chuva
no chão de barro
o quintal esse rosto à oeste
feito de folhas vivas escalando o ar
esse rosto que de manhã
sorri para quem acorda
e de noite
depois de silenciar a grandeza das
mínimas coisas
canta para quem dorme
(Wanda Monteiro)
*
Interrogações
esperança?
nenhuma.
certeza?
pouca.
equilíbrio?
conversa pra boi dormir.
medo?
muito.
muitos.
todos.
vida?
por um fio.
confinamento?
para mim, sempre confinado em mim mesmo, natural.
isolamento?
prazer.
corona?
gatilho.
ar?
sempre me faltou.
respirador?
artigo raro e de luxo.
vala, túmulo, tumba, caixão?
horror.
pronto socorro?
não me socorra…
morte?
é bem provável.
noticiário?
depressão.
afrouxamento?
afroxô.
presidente?
cuzão.
futuro?
incerto como sempre foi,
por um fio,
assim como a vida.
sempre por um fio,
a gente é que nunca se deu conta disso.
(Hugo Ribas)
*
Companheira
Companheira morte
Que desde o início serás o meu fim
Que rondas perto de mim
Dos pontos de sul a norte
Destemida odisseia pura
Que por bondade concedes tempo
Paira sobre os ventos
Destas cidades impuras
Amiga que verei no meu último dia
Escrachas como somos infelizes
Apenas maus atores e atrizes
Neste mundo de hipocrisia
Não te querem perto jamais
Correm falando de vida
E tu, sorrateira escondida
Suporta estes nossos ais
Há! Fingimos que nunca chegarás
Até nos fazemos de imortais
Acumulando orgulho e metais
Para um caixão que só tu caberás
Seremos apenas o nada
É o caminho reservado a todos
O fim é o barro e o lodo
Não se encanta com a madrugada
Ou se encante, se vista de pureza
Prime pelo bom e certo
Jogue água nesse deserto
Plante flores amenizando a rudeza
Ame como pouco tem amado
Lembre-se dos abraços ora contidos
Dos beijos que são proibidos
De quem quisera ao seu lado
Agora ela se espalha, companheira indevida
Com nomes bem padronizados
Lembre-se que seu legado
É o que resta desta breve vida
(Clodoaldo Turcato)
Dulcelene de Oliveira
Gratidão! Exatamente este sentimento me invadiu ao ler estes Poemas, entre tantas coisas duras e frias que estamos tendo que lidar, um pouco de Poesia é sempre bem vinda. Alegra a alma e acalenta o coração. Salve!