Pandepoesia: mais de um mês de isolamento
“Pandepoesia: mais de um mês de isolamento” é uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri com produções a respeito da pandemia de coronavírus e seus efeitos nas pessoas. Nesse momento em que grande parte da população já está de quarentena há mais de um mês, qual é a tônica desses escritos? Abaixo são apresentados dez textos des seguintes poetas: Mari Gemma De La Cruz, Rita Queiroz, Ranieri Carli, Armando Liguori Junior, Lucinda Nogueira Persona, Sandra Modesto, Ana Ferrari, Ivy Menon, Diná Vicente e Evaldo Balbino.
***
(Mari Gemma De La Cruz)
*
Dias de outono
Os vagalumes não acenderam as chamas.
Mar adentro, mar afora
Solitárias gaivotas buscam por alimento
Diante das intempéries do outono.
O peso do mundo corre por meus olhos
Sedentos por dias quentes
Com beijos e abraços intensos
Sem máscaras, sem constrangimentos.
Da janela ouço o tilintar de panelas
Que gritam por um tempo mais justo
Por atitudes humanas, por amavios.
Luzes declaram: estamos indignados.
Sou rio, não tenho muralhas
Sigo sereno com as areias do tempo,
Explodindo meus silêncios
No vago desejo de partilhas e ressurgimentos.
Venceremos os infortúnios, aqui e acolá.
Alfazemas brotarão, leves e serenas,
Cartografando a paisagem e a alma exposta
A cada mutação do firmamento.
(Rita Queiroz)
*
Carta para a amada distante em época de confinamento
Ficamos muito distantes, meu bem,
Encarcerados, segundo convém
À prevenção que começa na China.
Distância à custa do vírus algoz
Que determina a lonjura entre nós,
Que dizem ser mais letal que o da suína.
Um vírus que entra através da mucosa;
Daí, eu a evito de forma amorosa;
Quero que entenda e também se previna.
Tentou voltar de uma viagem a Trieste
Logo no instante maldito em que a peste
Fecha aeroportos e à Itália domina.
Tento deixar tudo dentro dos trilhos:
Estou cuidando dos nossos dois filhos,
Dos cães, jardim, mas não limpo a piscina.
Nas horas vagas, há filmes que alugo,
Cozinho massas regadas ao sugo,
Sem exageros por conta da angina.
Tenho bebido o conhaque e os afins,
O que me ajuda a viver nos confins
Muito feliz, você nem imagina…
Querendo o bem de Cecília e de Henrique,
Sonho a vacina que a ciência fabrique
Caso se aprove a eventual cloroquina.
Com a vacina, viria de Roma
Sem febre, tosse, coriza ou sintoma
Que se assemelhe a essa gripe assassina.
Sendo assim, como demanda o clichê:
Corro tomando nos braços você
Quando encontrá-la surgindo da esquina.
Pois não seria fantástico ver-nos
De novo juntos, imunes e eternos,
Tendo injetado na carne a vacina?
(Ranieri Carli)
*
Os velhos empresários
O empresário
Velho
Que acha
Que ainda
Não é
Diz
Que não
Se importa
Com a morte
De quem ele
Acha que já
É velho
O empresário
Surrealista
Também velho
Diz que
Milhares de
Pessoas
Dependem
Dele.
Que sem sua
Condescendência
Sua excelência
Seu negócio
O desemprego
Durará
Anos.
Outro empresário
Quase velho
Mas com cara
De bem velho
Diz que é totalmente
Contrário
Ao fechamento
Do comércio
Mas a favor
De isolar
Os idosos
Entre os
Quais ele
Acha que
Não se encaixa
Numa coisa
Todos os velhos
Empresários
Concordam:
Que o mercado
E a economia
É mais importante
Que a vida.
E também
Concordam,
Mesmo que
A realidade
Mostre o contrário,
Que não são velhos.
(Armando Liguori Junior)
*
Vírus
Levantou-se pela tarde
e escreveu alguns versos sobre o vírus
Pequeno esforço que pareceu exauri-lo
embora não estivesse enfermo
Tratava-se mais da difícil luta com a palavra
da intensa ação de salvaguardar a poesia
problema que de certo modo o confundia
Atravessou a noite naqueles versos
que se mostravam cada vez mais
enfraquecidos e necessitados de ar
Nada interrompeu aquele trabalho
Até mesmo o próprio poema sentia
que não iria longe o fim estava perto
Ao amanhecer, caiu em exaustão
a vida foi-se retirando aos poucos
Ao meio-dia se desvaneceu
O poeta quis sepultá-lo onde nascera
e assim aconteceu:
os restos mortais do poema
foram postos a repousar ao pé da memória
(Lucinda Nogueira Persona)
*
Quando tudo isso passar
Eu serei outra.
Quando tudo isso passar
Um cheiro diferente será protagonista no ar. A morte exalada.
Quando tudo isso passar
A solidão estará cravada em mim.
Por muitas noites passei no escuro a me buscar.
E quando amanhecia eu via…
Os olhos, os danos, as perdas.
Quantas desilusões das famílias aflitas.
As pessoas não sabiam em quem acreditar. Muitas bobagens pra vender notícias.
Eu vou lembrar-me dos ovos mexidos que não fiz nos meus cafés das manhãs.
Das ruas vazias, o sol preso no olhar. Na lua que eu perdi.
O meu lento caminhar dentro de casa. O latido do meu cão em ritmo estranho.
Muita gente sufocada. Muitas neuroses.
Quando tudo isso passar
“Força há um novo caminhar”.
Que estranho.
Quando tudo isso passar…
Tudo será tão diferente.
As poesias mais doídas.
Bares abertos, lojas abertas, gente vendendo. Lucros.
Gente vomitando o que ainda não engoliu.
Nada é eterno. A juventude não é eterna.
Governantes não são eternos. Quando tudo isso acabar…
Quem dirá?
“Foi só uma gripezinha”.
(Sandra Modesto)
*
Aos corações separados pela pandemia
De uma hora para outra fomos separados.
Separação essa, feita por um ente infinitamente pequeno,
Mas também,infinitamente perigoso.
Logo nós, que nunca nos largávamos,
Que nos víamos todos os domingos,
Que éramos refúgio um do outro.
Poxa, que injustiça aos casais novos como nós!
Nem tivemos tempo de nos amar direito,
De nos assumir,
De tocar um ao outro ao ponto de gravar todas as linhas e curvas de nossos corpos.
De uma hora para outra fomos separados.
Tanto tempo na mesma casa…
Mas nunca no mesmo cômodo, no mesmo estado de espírito,
Tão perto, mas tão distantes.
Tanto tempo juntos…
Os dedos ao redor da aliança já estão enrugados.
Com você aí, nessa UTI,
A casa parece mais vazia ainda.
De uma hora para outra fomos separados.
Uma tosse,
Febre,
Dor no peito,
Falta de ar
E você se foi.
Não pude nem me despedir direito.
Apenas encarei o caixão lacrado sendo isolado pela terra.
Fomos separados pela pandemia.
Mas ela vai passar, vai sim.
E os apaixonados vão se reencontrar,
Vão viver seu amor plenamente.
Os desiludidos vão se separar,
Ufa graças a Deus!
A pandemia vai passar, vai sim.
E os enfermos vão se curar,
Ou pelo menos, uma parte deles.
A quarentena vai acabar, vai sim.
E poderemos chorar nossos mortos,
Relembra-los e seguir nossas vidas.
Mas para ela acabar,
Ao menos neste momento,
temos que permanecer
S E P A R A D O S.
(Ana Ferrari)
*
a conta-gotas
o vento frio entra pela janela
meus braços
alcançam o sol
cerradas
ouço
a chuva barulha o chão
marcas brancas da insistência na calçada
conto-as
:
seis fileiras de 203 gotas cada
lá fora arrulha vida
florescem despudores
lilases cobrem a nudez das ruas
dobro o corpo para a esquerda
margaridas miúdas no meio da grama
colam reflexos enviesados na vidraça
nos meus umbrais
crescem tímidas
salsa
suculentas
e uma rosinha recém podada
perto da meia-noite
o vizinho passeia com os cães
afasto as cortinas
escondo o riso mofo
no tafetá florido
[consulto o calendário
me perco de mim]
sou só
quarto sala cozinha
:
não sei há quanto tempo janela
(Ivy Menon)
*
Quarentenar
__________ não é ócio.
É fatigar no turbilhão,
Mergulhar em oceano
De solitude inquirição.
__________ não é hostilidade.
É lapidar a própria essência,
Redescobrir rotas perdidas
No redemoinho de enganos.
__________ não é clausura.
É abrigar-se na própria alma,
Retirar o véu da ignorância
E desvendar novos enigmas.
__________ não é em vão.
É realinhar o eixo da vida,
Acessar os arquivos ocultos
E acender a luz na escuridão.
(Diná Vicente)
*
A Terra também se encherá de luz
O silêncio da noite é escuro e solidão. Um ruído ou outro se escuta, mas agora Belo Horizonte está sonolenta, um sono de quarenta anos no deserto. Um sono forçado em meio à pandemia de COVID-19, que assola o Brasil e o mundo. A areia é longa e árida, e o calor estende-se para longe, lá onde se podem ver oásis de vez em quando.
O horizonte não tem vozes. O céu de poucas nuvens também não mostra estrelas. E a Lua vaga pelo espaço imenso e vazio.
Cadê os bares, os risos, as pessoas conversando, namorando, tomando um drink e brindando a vida para sempre?
Cadê a Avenida Antônio Carlos movimentada, com os carros poluindo o impossível ar em nossas narinas?
Cadê as pessoas andando com os seus quefazeres infindáveis?
Cadê aquelas senhoras e aqueles senhores fazendo sua caminhada de todo dia? Estou com saudade daquela senhora aqui do lado, aquela dona cuja língua é longa e elétrica. E agora não a estou vendo; não a ouço mais debulhar vidas alheias. Possivelmente esteja neste momento debulhando seu rosário em casa, pedindo por si e por todos.
Cadê os moradores de rua (morando nela porque na vida passaram por processos de exclusão) que antes pediam comida, dinheiro ou qualquer outra coisa?
Cadê aquele cara, também morador de rua, que sempre ficava ali perto da lotérica na esquina, e que pedia centavos e ainda fazia questão de dizer que era para beber uma cachaça?
Cadê os gatos se amando de noite e vizinhos reclamando dos barulhos de amor? Cadê os ruídos de amor entre as próprias pessoas? Já não escuto mais o ranger de camas em outros apartamentos, pois estamos todos apartados de tudo.
Cadê a noite em si mesma existindo, cálida como sempre o foi em Belo Horizonte?
Cadê o homem com o seu pregão da pamonha ou dos tantos ovos por dez reais?
Cadê o rapaz da bicicleta, pedalando esperto e passando por nós com a imensa cesta de pães que ele vende para ganhar seu pão de cada dia e que nós compramos para matar nossa fome?
Cadê a moça da outra esquina, a que já não mais vende as flores para olhos que as cheiram de gula e de amor?
Onde está a cadela que virava e mexia brotava na rua, já parida e com tetas caudalosas, exibindo a todos nós que já era mãe mais uma vez e que deveríamos alimentá-la para que suas crias tivessem leite?
Onde o ônibus da minha rua, antes passando cheio de pernas e braços felizes ou cansados, e agora pouco passando, quase nada?
Onde as luzes de carros ofuscando meus olhos aqui na janela do meu prédio?
Cadê aqueles momentos de caraoquê, quando nossos ouvidos sempre reclamavam dos intratáveis candidatos a cantores? Agora quero ouvi-los a todos, a todas aquelas vozes de taquara rachada, indecisas entre acompanhar a melodia ou então ler gaguejando a letra da música na tela. E um descompasso gostoso entre a voz que cantava e a música e a letra…. tudo um fuzuê danado.
Lembro certa vez uma garota num caraoquê cantando “Porto solidão”, e eu ficando sem ar com voz tão bonita e potente, ela alçando ares como o fazia a voz do Jessé. Alçando ares e singrando mares: “Meu coração, a calma de um mar / Que guarda tamanhos segredos / De versos naufragados e sem tempo // Rimas de ventos e velas / Vida que vem e que vai / A solidão que fica e entra / Me arremessando contra o cais…”.
Da minha janela vejo agora o silêncio. Nem canto, nem prece, nem nada.
Da minha janela sinto a noite com medo e escondida. Pobre noite! Pobres olhos que a namoram!
Da minha janela ouço a solidão…
E de repente uma ambulância passa ali na avenida, rápida e barulhenta. Ela é rês perdida no campo sem flores. Ou melhor, é ovelha rápida indo guiar um pastor tresmalhado em algum canto desta cidade.
De novo o silêncio me atravessa, como atravessa esta noite em mim. E vou conversando com o escuro, silenciosamente.
Mas esperem… Agora escuto algo novamente! Sim, escuto! Um ranger de caminhão, vozes de rapazes enfeitando o lusco-fusco. São eles, os garis que tanto nos ajudam. Os garis que, como tantos outros profissionais, cuidam da nossa cidade. E escuto metais tinindo, garrafas se chocando, alguns cães ladrando como a proteger as casas dormidas. Escuto sacolas de lixo sendo jogadas na carroceria compactadora do veículo. Os garis vão limpando tudo, os restos de nossa vida trancada em meio a esta pandemia.
Agora passa um carro numa rua aqui perto, tocando música alta, buscando acordar a vida. É um funk solitário e solidário.
Cadê a solidariedade? Sei que ela existe, mesmo que agora guardando distância, fugindo de espirros, eximindo-se de toques em corpos alheios.
Olho para o céu sem estrelas e percebo que a Lua é hoje quarto crescente. E vejo um beijo que ela agora está dando numa nuvem errante pelo espaço. As duas bem juntinhas. Sinto esse beijo aqui em mim, e sei que o satélite da Terra vai crescendo até ficar cheio, feliz, pleno. A Terra também se encherá de luz.
Belo Horizonte, 02 de abril de 2020, 23h53min
(Evaldo Balbino)
Sarah menon
Poemas Maravilhosos! Em Tempos Tão Difíceis, a Arte Vem Como Um Alento! Amei!!!
Ivy Menon
Absolutamente honrada em estar junto com poetas maravilhosos, esses! oBRIGADA, DIVANIZE! parabéns a todos! amei conhecê-los!
Ana L. F. Gomes
Belos poemas, fortes, verdadeiros, cheios de graça…
Ivy Menon, seu poema ficou lindo, é o fecho mais ainda!
Amei!