Pandeprosa: o que maio nos reserva?
“Pandeprosa: o que maio nos reserva” é mais uma curadoria realizada por Divanize Carbonieri, dessa vez com minicontos a respeito da pandemia do novo coronavírus. Nesta primeira edição do Pandeprosa, estão reunidos minicontos, respectivamente, de João Antonio Guerra, Márcia Elizabeti Machado de Lima, Wuldson Marcelo, Ricardo Pedrosa Alves, André Mellagi, Sonia Palma, Antonio P. Pacheco, Val Baminger Oliveira, Daniel Russell Ribas, Helena da Rosa, Rodivaldo Ribeiro e Clara Arreguy.
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Comida
Ele estava lendo os apontamentos publicados por um escritor de sua cidade.
Especificamente de um escritor morador da zona nobre da sua cidade, acerca das ruas daquela zona nobre estando quarentenada a cidade.
Entre os apontamentos, este, Não tem um branco na rua, e mais abaixo outro, quem pode se isolar tem, para com quem não pode, um relacionamento como que de canibalismo, todavia alguém tocou a campainha.
— Oi boa noite quem é.
— É a comida.
(João Antonio Guerra)
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Notícia
Ela trazia em si muita vida, aconchego, conselhos, afetos, bronca na hora certa; porto seguro para filhos, netos, bisnetos, amigos, qualquer ser que necessitasse de um ombro. Sem contar os bichinhos, a quem alimentava e dava carinho, e que lhe faziam companhia, assim, não se sentia só, não havia solidão, mesmo sendo a única que restou numa casa, antes movimentada, habitada pelos seis filhos que parira com muita dor, que um a um criaram asas e ganharam o mundo.
Ah, que difícil aceitar, justo Ela, quem trouxe à luz uma prole, amou, cuidou; não ouviu um adeus de nenhum dos seus, não teve quem lhe segurasse as mãos, nem foi vestida com a veste escolhida por alguém da intimidade, não foi levada à última morada pelas mãos de quem trouxe à vida. Seguindo os frios protocolos, fez crescer as estatísticas e desceu à vala comum.
(Márcia Elizabeti Machado de Lima)
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Cama de gatos
César chegou em casa, já tinha o sabão líquido, a esponja e uma bacia com água sanitária preparados para limpeza dos produtos e para deixar as frutas e verduras de molho por 15 minutos. Esse era o ritual pós-supermercado e pós-farmácia desde que o isolamento social foi decretado. Trinta poucos anos de agitação, seja nos estudos, seja nas noitadas, para, em 2020, viver dois meses de uma rotina voltada a não morrer e manter a sanidade. Os pais, seu Edu e Jacira, já com 70 anos, enquadrando-se em três ou quatro dos grupos de risco, somavam a essas preocupações a de não matar.
Seu Edu assistiu uma matéria na TV. A veterinária dizia que não se pode dormir com gatos, pois os bichanos têm doenças que podem ser transmitidas para os humanos. Depois veio o sermão, mais um, na verdade. Não era a primeira vez que o pai falava sobre isso. São quase três anos batendo na mesma tecla.
Um dia, César se sentiu mal: tosse seca, febre e cansaço. Dias depois, dificuldade para respirar. Tudo aconteceu tão rápido.
A última vez que Jacira viu o filho foi em um corredor de hospital. E César colocando a máscara e um tchau abafado compõem o ato final da história de Edu com o homem que ele criou.
O casal não viu o enterro do filho único em uma vala comum.
Na noite seguinte, com o quarto de César trancado, Jacira pegou Dalila, Sr. Black e Fox e tentou ajeitá-los na cama. Levará um tempo para que os cinco se acostumem a dormir juntos.
(Wuldson Marcelo)
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A guerra dentro da gente
‘E se vier mesmo uma segunda onda, esses problemas neurológicos, isso que está agora atacando as crianças, já imaginou?’. Hoje de manhã já tivemos a mesma conversa, mas fui eu que falei com ela. Acho que ela não prestou atenção, tínhamos chamado o gás, compras iam chegar, mas eu tinha falado ‘Acho que vai piorar tudo e vamos todos morrer’. Coisas tão grandes assombrando nossas cabeças. Agora de tarde, eu respondi pra ela ‘Mas já aconteceu isso, já aconteceu no cinema. Como é mesmo o nome daquele filme?, Guerra dos mundos? Um que vem um vírus e mata todo mundo na Terra’. ‘Aquele com o Tom Cruise?’. Eu tinha fumado, demorei um pouco pra processar e tive um sobressalto exultante ‘Ah, graças a deus, eu não lembrei dessa versão. Eu fiquei feliz por ter lembrado do original e não de um filme com o Tom Cruise’. Que alegria besta. Na verdade, não morre todo mundo, fica o Tom Cruise. Aí é que está, o nome do ator que faz o Tom Cruise no original eu não lembro, mas do maldito Tom Cruise eu lembro. Por isso fiquei feliz em não lembrar do filme mais recente. Foi uma vitória sobre a indústria cultural, como se o primeiro filme também não fosse um produto comercial.
(Ricardo Pedrosa Alves)
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Contratempo
Achei que fosse chegar tarde. Mas os poucos carros na rua aliviaram o trânsito. Achei que não poderia mais entrar aqui. Mas não tinha ninguém além de mim. Achei que eu devesse vestir algo de acordo. Mas só pediram para lavar as mãos. Achei que eu tivesse alguma palavra para dizer. Mas o silêncio tratou de explicar tudo. Achei que alguém viesse me confortar. Mas o receio acorrentou os outros. Achei que poderia segurar tua mão. Mas você já estava isolado de qualquer contato. Achei que ainda fosse te ver. Mas nenhuma luz penetrava seu repouso lacrado, mesmo sabendo que estava diante de mim. Achei que pudesse ficar mais tempo aqui. Mas já tinham que te levar. Há outro velório em seguida.
(André Mellagi)
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Relato de uma contaminação
Ao entrar no aeroporto de Milão, fomos surpreendidos com uma enorme fila onde passaríamos por um estranho objeto medindo a temperatura de nossa testa. Trocamos olhares, aqueles homens nos testando, todos protegidos, estranho aquilo. Não estávamos em Wuhan. Éramos um grupo de 26 amigos partilhando a volta das férias. Notamos a tensão no ar. Somente uma semana de férias na estação de esqui, no vilarejo isolado do norte da Itália, e parece que passamos por um portal para um filme de ficção. Pessoas indo e vindo, olhares preocupados, maioria delas usando máscaras. Tantas diferentes… bando de fashionistas, só pode, pensei! Voo de volta a Londres lotado. Sem máscaras a bordo. Heathrow sem aparelhos na testa, sem homens com aquelas proteções surreais. Não me senti muito bem no caminho. Pensei ser o cansaço das 6 horas de viagem das montanhas do norte da Itália até Milão. Relembro o trajeto maravilhoso, percorremos toda a Lombardia, Bérgamo é um sonho de cidade. Chegamos em casa cansados. Deixamos para desfazer as malas dia seguinte. Minha cabeça doía muito, precisava tentar dormir. Acordei me sentindo pior, indisposta. Essa será uma gripe “daquelas”, pensei. Ligamos a tv e, surpresos, notícias sobre a pandemia na Itália, com foco sério mais ao norte. “Foco sério mais ao norte”, repeti para mim mesma em voz alta. Como assim? Não ouvimos nada quando estávamos lá. “LÁ”, exatamente lá onde estávamos, no olho do furacão! Minha garganta doía. Não conseguia parar de pensar no voo lotado vindo de Milão e em quantos outros possíveis voos lotados. A Inglaterra “em peso” esquia nas montanhas do norte da Itália, todo início de ano. Adoeci muito, passados vários dias a tosse era terrível, eu não conseguia dormir e não deixava o David dormir. Ele esteve doente, mas por poucos dias. Ficou bem rapidamente. As notícias não paravam, o vírus se espalhava rapidamente pela Inglaterra. Ficamos isolados, cumprindo regularmente a quarentena. Na cidade calma os animais estavam livres para a vida. Mas a vida se foi de nossa amiga querida, a Débora. Dez dias após voltarmos da Itália. Tristeza sem fim! Me desespero com as notícias no Brasil. Penso em meus filhos o tempo todo. Deus não poderá protegê-los. Está ocupado demais com tantos problemas mundiais. Esse vírus é só mais um problema para ele. Então, tomara que o clima ajude nosso país. Muitos dias se passaram e não precisei ser internada, mas num hospital daqui da cidade meu cunhado, Ian, perdeu a batalha para o vírus. O vírus roubou-lhe uma vida jovem e saudável, roubou-nos a alegria de tê-lo todo em sorrisos. Arrancou-lhe da família, sem aviso, sem preparo. Mais tristeza sem fim! E milhares de vidas já se foram, aqui na Inglaterra. Vejo agora, na tv inglesa, notícias do Brasil. Fileiras de covas intermináveis. Deus, por favor, por favor, eu imploro, o Brasil precisa de sua proteção urgente!
(Sonia Palma)
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Terceira Guerra
No 45º dia, mais uma vez, ele se preparou para sobreviver. Vestiu-se e se equipou com todos os apetrechos de defesa necessários. Despediu-se da mulher e dos filhos apenas jogando-lhes beijinhos e encenando abraços. Calçou as luvas, fez um afago no cachorro sob o olhar indiferente do gato, e saiu para enfrentar os inimigos que, invisíveis e silenciosos, atacam o mundo por todos os lados.
Na rua, viu os engarrafamentos de sempre. As pessoas expostas, desprotegidas, à mercê dos ataques mortais, nas portas das casas lotéricas, bancos, pontos de ônibus, na pracinha, nos mercados, onde as aglomerações e o tumulto eram os mesmos daqueles dias normais. É no hospital em que trabalha, no entanto, que ele vê o resultado daquela imprudência ignorante: centenas de infectados, gente morrendo aos montes, sufocadas, os pulmões apodrecidos por não acreditarem que se travava, contra um vírus, a Terceira Guerra Mundial.
(Antonio P. Pacheco)
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Afago
Estávamos lado a lado, nossas camas separadas apenas por uma cortina, mas eu conseguia ouvir a respiração ofegante dela, puxava o ar quase a ponto de sucumbir. Do meu lugar eu só via uma de suas mãos esticada ao longo do corpo. Fixei o olhar naquela mão magra, cuja pele era enrugada e fina como papel. Quase pude sentir a maciez do toque daquela mão que nunca se cansava de afagar a minha cabeça e que agora, jazia ali quase inerte. Fechei os olhos e me esforcei também para respirar, tentando ignorar a dor que parecia queimar o meu peito. A cada minuto ficava mais difícil e eu sentia que a vida ia se esvaindo de mim. Pareceu se passar um longo tempo até que uma enfermeira chegou e me disse algo sobre finalmente ter aberto uma vaga na U.T.I. Foi a última vez que vi a carinhosa mão de minha mãe.
(Val Baminger Oliveira)
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Pandemia, parte 1
Recolho os restos mortais e jogo no vaso sanitário. Dou a descarga e me sinto limpo pela primeira vez. Quase cinco da manhã. Nunca vi esta vizinhança tão quieta. Esta é a única mudança bem-vinda desde que a quarentena fora instaurada. Sou um cara antissocial, raramente saía de casa. Agora tenho a desculpa esfarrapada perfeita para me esbaldar em meu papel autoimposto de ermitão urbano.
Sinceramente, espero que o mundo acabe. O meteoro prometeu e não cumpriu, como todos. A doença humana há muito está espalhada. Talvez precisasse de uma oportunidade para se apresentar de maneira adequada. A morte é uma senhora de modos polidos. No meu peito, tenho tatuado os quatro cavaleiros do apocalipse. Quando mexo os músculos, os cavalos relincham. Rio como se fosse o último som. Não ouço estrondos, sussurros, trombetas ou qualquer música. Apenas os barulhos agudos e estúpidos dos animais de carga que me cercam. Meu riso se torna tosse com facilidade. Os outros sons também. Exerço minha paciência sentado enquanto tudo termina. E sim, como na canção, eu me sinto bem.
(Daniel Russell Ribas)
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Pandemia
O covid-19 fizera mais uma vítima. Lara chora ao presenciar os filhos se despedindo da mãe. Termina seu plantão médico e pensa nas tantas mortes que têm ocorrido pelo mundo. Chora mais uma vez, ao chegar em casa e cumprimentar os filhos através da porta de vidro. Chora ao se isolar no quarto, porém, sabe que o sacrifício é necessário, mas sabe também que há os que não valorizam este esforço para combater a doença e cuidar dos pacientes infectados. Chora ao sair para o trabalho e ver pessoas andando nas ruas, na mesma proporção em que retroescavadeiras abrem valas, incessantemente.
(Helena da Rosa)
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História do futuro, por Paul Shelley
Contam que certa vez, numa aldeia perdida no tempo — alguns poucos se iludem sobre passado e futuro ainda, já que o presente, se sabe há muito, sequer existe — correu a notícia da chegada de um menino reconhecido como sábio por 11 povos. Diziam ser ele um escolhido de outras eras agora renascido; a visita, entretanto, era de conhecimento de alguns poucos. E para esses, só havia um problema, a idade.
Sua fama lendária superava à larga os 13 verões de existência, daí a pequena emenda metafísica de ser ele alguém que vivera antes de todos e que fora redivivo em símbolo de esperança. Tudo porque convencionou-se, por obra dos velhos sábios das outras aldeias, que ninguém podia acumular tanto conhecimento em tão pouco tempo, e também por ser de muito melhor tom e agrado de toda a civilização que assim o fosse — afinal, ninguém quer crianças ensinando anciões, ditando a economia ou fazendo ruir junto qualquer ideia de sociedade pervertendo outros jovens.
O pacote inteiro — o muito dele falarem, as multidões a segui-lo, a santificar ou amaldiçoar, conforme o lugar de onde vinham — que trazia consigo era causado por uma ideia muito simples. Ele centrava seus ensinamentos em uma única grande verdade: só se aprende a viver amando, e não temendo, a morte e sua ideia de apagamento.
“Ao entendermos que o cimento de toda obra, mesmo das maiores, é a vaidade, aprendemos junto e imediatamente quão inúteis somos à Terra. Como marcas para viajantes deixadas no chão do deserto”, costumava repetir a si e a todos o menino que, ninguém sabia, passava noites em claro com medo de não conseguir falar, de não o entenderem ou simplesmente de não gostarem dele, visto ser, enfim e à parte o que pensavam os adultos, só uma criança.
No meio da jornada, como era hábito acontecer, viu-se açoitado de repente por sua velha conhecida ansiedade de nenhuma origem aparente. Reação e remédio automáticos, forçou o cavalo ao estribo, se adiantou e chegou à nova vila um dia antes do previsto, próximo ao amanhecer. Tanto melhor, pensou, pois haveria tempo para revisar o sermão agora aguardado por todos — pombo correio ou WhatsApp, que diferença faria? A fofoca é universal e o isolamento de todos, a lei.
“Se de manhã o caminho apontado parecia o mais promissor, à tarde percebemos o tamanho do engano: não vai dar nem pra voltar, porque o vento e a areia já o apagou. Resta então enfrentar a noite. E só se sobrevive às trevas com a ilusão de, no novo dia, fincar mais fundo as estacas e sinais e, enfim, definir a rota. E tudo é novo engano. Não há rota, só a escolha entre seguir caminhando e adiar o soterramento ou esperar a natureza trabalhar e ser enterrado ali mesmo. A isso chamamos liberdade: o direito de, às vezes, adiar o inevitável e outras vezes abraçá-lo. Quem nasceu há 5 mil anos ou vai ver a luz daqui a 100, pouco importa, o desfecho é e sempre será o mesmo”, disse, orgulhoso, ansioso e de olhos fechados, contando os 10 segundos habituais de silêncio que se seguiram aos gritos e palmas nas outras 11 vezes.
Mal desceu da pedra onde havia subido para o tal discurso, foi pego pela polícia local, que não teve tempo de ouvir explicação nenhuma, porque o garoto foi arrancado dali pela multidão de tal sorte que não durou nem cinco minutos até rasgarem seu último pedaço. Um silêncio se sobreveio à gritaria do linchamento. Explicação alguma houve.
Só um detalhe havia escapado ao pobre menino-herói antes de chegar àquele lugar. Ele não sabia que os políticos, empresários e demais conselheiros haviam acabado de ser convencidos pelo rei a aprovarem um pesado aumento de impostos para construção de três pirâmides e uma estátua gigantesca como nunca se vira na história de nenhuma civilização jamais conhecida.
O povo, inicialmente relutante, enfim acreditara no carisma divino de seu regente. Tudo ao preço de muito suor e sangue, mas o prêmio compensaria o esforço ao tornar perpétuos todos via tais grandiosas marcas eternas no tempo. A única condição era escrever ao pé da estátua o nome do rei, gritado a plenos pulmões até o fim pelo menino: “Ozymandias, Ozymandias”.
(Rodivaldo Ribeiro)
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Colapso do sistema
Pensava que pouca coisa mudaria em sua vida com o advento da pandemia, que obrigaria todos a um recolhimento doméstico antes impensável. Mas é que não trabalhava fora, sempre cuidara da casa e dos meninos, quando ainda crianças, e do marido. Sobretudo do marido. Achou então que o hábito de ficar em casa se incorporaria às obrigações cotidianas sem sobressaltos, ainda mais que haveria as exceções das compras de supermercado, uma ou outra saída obrigatória.
O que não calculava era que a presença do marido ao seu lado, vinte e quatro horas por dia, em home office, fosse transformar a tal rotina num oceano infinito de ansiedade e medo, das surpresas desagradáveis ao inferno em vida.
Mais de vinte anos juntos, filhos criados, ambos estudando em outras cidades, sobrara ao casal um convívio cada dia mais distante e frio, contato físico praticamente zero, a não ser quando ele fazia alguma gracinha contra ela, pois a considerava burra e incompetente e um de seus passatempos, nos fins de semana juntos, era exatamente mexer com ela, com seu suposto desconhecimento de assuntos sérios, que extrapolassem os muros da casa, terminando com um tapinha na bunda.
A equação é velha conhecida: no início do namoro, foi ele quem a desestimulou de terminar o curso superior. Foi ele quem, recém-casados, ela já grávida do primeiro filho, a convenceu de que não precisaria trabalhar fora, pois o salário dele daria pra sustentar a família. De mais a mais, as coisas correriam melhor na casa com a presença dela gerenciando tudo, cuidando da prole, do que essas tarefas em mãos de estranhos. Com o passar do tempo, isso que ela se tornou foi obra conjunta do casal: uma mulher pouco ligada em assuntos cultos, em temas profundos ou em questões técnicas – computador, rede social, essas coisas, então, passavam longe. Atualizada apenas pelo que vê na tevê.
Virou isso, e é disso que ele não gosta mais. Ri da ignorância dela, ri da pouca vaidade, da moda um passo atrás de quem está na rua, convivendo, up to date. Desinteressou-se do sexo, da conversa, de partilhar ideias, de dar um passeio. Se os meninos não têm disponibilidade pra viajar com os pais, ele prefere fazer isso sozinho, alegando viagens a trabalho, e combinando negócios com lazer. Sem ela. Que só conhece as paisagens de novela e jornal, as aventuras dos famosos e dos caçadores de fama.
Agora, dentro de casa vinte e quatro horas por dia, o que poderia sair disso? Irritação, impaciência, implicâncias, o desvelamento de que aquela relação já não existia havia anos, mas que se mantinha na inércia, no receio (dele) da despesa que seria um divórcio, no medo (dela) da solidão e de ter que preencher com projetos e sonhos o que sua vida virara nas duas últimas décadas.
Do gelo do silêncio agressivo às palavras ofensivas eles passaram da segunda para a terceira semana de quarentena. O primeiro tapinha na bunda que ela devolveu com um tapão nas costas foi no décimo sexto dia. O primeiro tapão nas costas que ele devolveu com um tabefe na cara foi no minuto seguinte. O rosto vermelho, em fogo, ela lavou na pia do banheiro. O espelho, mirou entre as lágrimas que afloraram. Um sentimento agora incontível lhe ocupou a mente daí em diante: que merda de vida!
Assim foram se sucedendo os dias. Põe a máscara, álcool gel na bolsa, desce de escada até a garagem, dirige até o supermercado, espera na fila, compra o que precisa, descarrega sozinha o carrinho no porta-malas, higieniza as mãos, as maçanetas, a alavanca da marcha, o volante, o retrovisor, o carrinho do prédio, os botões do elevador, tira o sapato do lado de fora, carrega tudo sozinha pra dentro de casa, descarta sacos plásticos, higieniza os produtos comprados, acomoda tudo na geladeira, tudo sozinha, carregar, descarregar, fazer força, abaixar-se, levantar-se, malhação de braços e pernas, organização, higienização, cuidados, água sanitária, água e sabão, tudo sozinha, afinal, ele está em home office e essas sempre foram obrigações dela, a parte que lhe cabe na gestão do home business.
Tudo sozinha, por isso não foi difícil comprar e guardar, pra hora certa, a dose cavalar de veneno de rato a incluir na lasanha, afinal, lasanha, pra ele, era inteira, ele a considerava direito adquirido, então, dia de lasanha, ela aproveitava que não comia presunto pra fazer o prato dele, só dele, e pra ela um mexido com o que ficou de ontem, as sobras de arroz, feijão, uns pedacinhos de bife e bastante ovo, estava tão gostoso ontem, você sabe que eu não sou muito chegada em lasanha, pode ficar à vontade, a lasanha é toda sua.
Não teve pressa. Na terceira e na quarta semana os tapões pra lá e os tabefes pra cá se intensificaram, mas era só ela dar a distância pretendida por ele que as coisas se acalmavam, e nem trocar ideias era necessário. Bastavam tá na mesa e quer um cafezinho agora. No dia da compra, quer alguma coisa especial? Foi na sexta semana que ele respondeu tem muito tempo que você não faz lasanha. Ok, eu trago os ingredientes. O tempero extra já estava guardado no armário do material de limpeza, na prateleira ao lado do pinho-sol, da água sanitária e do álcool setenta por cento.
A hora certa chegou no dia em que ela prestou atenção no noticiário: os números de mortes em sua cidade se multiplicaram por quatro. Enterros coletivos. O triplo de gente morrendo em casa, sem atendimento. Sem causa mortis. Sem médico, ambulância, vaga em hospital, nada. Colapso no sistema.
Passou uma semana mandando aos filhos mensagens em que relatava como o pai deles apresentava uma febrinha, uma tossezinha, mas que era forte e não estava no grupo de risco, por isso nem adiantava procurar o posto de saúde ou o pronto-socorro porque mandariam de volta. Não atenderiam. Que não comentassem com ele, pois estava irritadiço, iria zangar com ela por levar às crianças preocupações desnecessárias.
No oitavo dia de contaminação, comeu uma lasanha inteira e morreu de covid-19, aquele infeliz. Morreu em casa, entrando pras estatísticas de subnotificação. Enterro coletivo, sem velório. E sem as lágrimas da viúva.
(Clara Arreguy)
Antonio Peres Pacheco
Aplausos aos autores e parabéns à curadora. Bravos!
Bruno Debize
Gostei muito do Daniel Ribas