Pão e rosas e arcos-íris – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Pão e rosas e arcos-íris
Acho que ficar demais sem festa, ainda mais neste dia de São João, endoida. É certo que eu e mais todo mundo já víamos sinais nas coisas, provavelmente. Não sei você, mas eu era desses que adorava ver nos veios das portas do armário de madeira os espíritos que ficaram ali congelados. Tinha um armário na casa do meu avô paterno que era cheio deles. Quando a gente dormia lá, dormia com os anjos.
Sabia que uma possível tradução para “A midsummer night’s dream”, de William Shakespeare é “Sonho de uma noite de São João”? Então.
Comecei essa coluna há três semanas e nada do que foi escrito até a véspera da entrega está aqui. O plano era fazer uma coluna super queer. Separei os textos por letra do nosso alfabeto. Traduzi metade. Ia me dedicar exclusivamente a esses textos, porque no dia seguinte faço live de leitura no meu Instagram, e estava tudo integrado: tradução, alguma forma de conferência, performance da literatura. Tudo em harmonia com as coisas que ando fazendo na faculdade.
Aí teve 19j.
Ganhei uma rosa comunista na passeata aqui em Recife, que foi muito, mas muito bonita. Muito mais numerosa que a primeira, reprimida pelo governo do Estado. Mais popular, me pareceu. O vexame protagonizado pelo governo na manifestação de maio não se repetiu. Reencontros sem abraço. Marchei perto do MST quase o tempo todo, pouco se podia mover, por causa da forma como o distanciamento estava sendo coordenado. Chegamos à ponte onde a polícia agrediu as pessoas que marchavam na frente. Abraçamos o rio Capibaribe.
Manifestação mexe. Não tinha o bar depois para levar esse ânimo. A debandada, com a chuva e o vírus, foi rápida. Uma amiga veio para casa, e passamos a tarde bebendo e olhando o rio. Faltou algo que veio para a escrita.
Como disse, ganhei uma rosa. Haverá uma porção de histórias para as rosas e o comunismo, mas eu quero escolher uma para traduzir. Digo, tem um poema, que foi entoado numa manifestação, quero traduzir isso, mas conto a história antes: uma lei que reduzia as possibilidades de ganhos das mulheres operárias da Lawrence Textile Industry, em Lawrence, Massachussetts (melhor não descrever a lei para não dar ideia) foi combatida com uma greve que durou dois meses no inverno de 1912. Três mortes, trezentas prisões e muitas agressões policiais que resultaram em incontáveis feridos, parte das reivindicações operárias foram atendidas. Naturalmente, os agentes do capital buscaram novos espaços mais colonizáveis para paulatinamente se reinstalar, e à greve também se atribui a responsabilidade por “expulsar” a indústria têxtil do nordeste estadunidense.
É toda uma tradução que se faz necessária para a língua liberal. Inclusive para que nós, pessoas que nos associamos ao movimento LGBTQIA+, reconheçamos os empréstimos linguísticos – e ideológicos.
Mas na falta de tradução do capital, quero mostrar para vocês este poema de James Oppenheim que foi entoado pelas mulheres, e depois, no processo de sua tradução, aliás bem difícil e cheia de escolhas sérias, direi coisa ou outra. Aqui, para quem lê inglês, no original, antes que eu o estrague para o português:
Bread and Roses
James Oppenheim
As we go marching, marching, in the beauty of the day,
A million darkened kitchens, a thousand mill lofts gray,
Are touched with all the radiance that a sudden sun discloses,
For the people hear us singing: Bread and Roses! Bread and Roses!
As we go marching, marching, we battle too for men,
For they are women’s children, and we mother them again.
Our lives shall not be sweated from birth until life closes;
Hearts starve as well as bodies; give us bread, but give us roses.
As we go marching, marching, unnumbered women dead
Go crying through our singing their ancient call for bread.
Small art and love and beauty their drudging spirits knew.
Yes, it is bread we fight for, but we fight for roses too.
As we go marching, marching, we bring the greater days,
The rising of the women means the rising of the race.
No more the drudge and idler, ten that toil where one reposes,
But a sharing of life’s glories: Bread and roses, bread and roses.
Our lives shall not be sweated from birth until life closes;
Hearts starve as well as bodies; bread and roses, bread and roses.
A primeira decisão diz respeito ao gênero do texto: é uma marcha, com rimas e ritmo muito claros – tanto que foi de fato cantada pelas mulheres de Lawrence. No entanto, não é uma marcha de palavras simples: os versos são longos, empregam-se muitos recursos de linguagem, como metáforas, metonímias e sinestesias sofisticadas, e a figura feminina é tratada de uma forma muito singular para um texto escrito sobre mulheres por um homem em 1912. Evoca-se maternidade, mas trata-se de uma maternidade-sentimento que é revolucionária, que leva a mulher a protagonizar a greve por amor aos filhos, circunstancialmente, mas dois dedos abaixo dessa capa, há um outro tipo de amor: pelos ideais comunistas, pelo tempo livre, pela distribuição do trabalho e seus produtos. Manter a métrica desses versos longos, métrica de padrões rítmicos diferentes daqueles de nosso idioma (embora sua emulação seja absolutamente possível), e as rimas feitas com vocabulário muito específico e elevado é uma missão. Então apresentarei a você aqui uma tradução ruim, primeira tentativa, focada principalmente nos símbolos – e no centro eles a rosa – para trabalho posterior no que concerne ritmo e rima.
Pão e rosas
James Oppenheim
Quando marchamos, marchamos, na beleza do dia,
Um milhão de cozinhas escuras, mil galpões de usina cinzentos
São tocados por um repentino sol que revela seus raios,
Pois o povo nos ouve cantar: Pães e Rosas! Pães e Rosas!
Quando marchamos, marchamos, pelos homens também batalhamos,
Pois são filhos de mulheres, e outra vez os damos à luz.
Nossas vidas não serão de suor do nacimento à morte;
Corações têm fome tanto quanto os corpos; dê-nos pão, mas dê-nos rosas.
Quando marchamos, marchamos, inumeráveis mulheres mortas
Gritam em nosso canto seu clamor por pão.
Pequena arte e amor e beleza seus espíritos trabalhadores conheciam
Sim, por pão lutamos, mas lutamos por rosas também.
Quando marchamos, marchamos, trazemos dias melhores,
O levante das mulheres é o levante da raça
Nunca mais o trabalhador e o preguiçoso, dez que suam, um que descansa
Mas a divisão das glórias da vida: Pão e rosas, pão e rosas.
Nossas vidas não serão de suor do nacimento à morte;
Corações têm fome tanto quanto os corpos; dê-nos pão, mas dê-nos rosas.
Essa é a primeira versão, absolutamente impossível de ser cantada, e com todas as rimas destruídas. Agora será preciso repassar esse texto em português, buscando formas de editá-lo nesses dois aspectos. Do que foi feito, há coisas a preservar, como por exemplo, o jogo entre o cinza e o escuro, o sol e as rosas. A solenidade do tratamento dos fantasmas das mulheres, também.
Algumas palavras têm sonoridade bonita, como “the sharing”, que na nossa língua vai para divisão (me parece a menos pior), compartilhamento e distribuição – essas últimas muito de manual comunista (amo e sou) e pouco de cotidiano. Intensificações para as noções de trabalho são também necessárias. Por exemplo, “drudge”, como substantivo, se traduzido usando vocabulário em português de virada do século é “o que moureja”, que é uma palavra complicada, racializada. E não sei se me interessa fazer uma versão para um protesto de hoje, por outro lado – talvez seja um exercício interessante de transcriação, mas antes de transcriar eu queria uma tradução com voz “de época”, sem as coisas racistas da época (e aparece a palavra “race”, já que é complicada).
São decisões para as próximas semanas. Não prometo apresentar o resultado aqui na coluna, porque sempre que prometo qualquer coisa, não cumpro. E nem dá pra culpar meu signo.
De volta à beleza: a tradução de um dos lemas comunistas, “trabalhar menos, trabalhar todos, distribuir tudo” é muito bonita, e marcada pela rosa: o amor, o prazer, a alegria. Por isso manifestação é tão bom, acho. De alguma forma essa beleza acontece e lembra que não é só pela sobrevivência que estamos juntos.
Então achei que deveria ceder espaço ao movimento operário, à greve, à manifestação hoje na coluna, porque é nossa luta. A luta por nosso direito a existir e a ser feliz como pessoas LGBTQIA+ é também a luta por um mundo materialmente justo, em que todos mais que sobrevivam, em que todos possam pensar no melhor de si para trazer para o coletivo, como argumenta Oscar Wilde em “The soul of man under Socialism”. Para o irlandês, o comunismo liberta cada um e todos “da sórdida necessidade de viver pelos outros”. E, libertos, poderemos viver com os outros, com pão, rosas e arcos-íris.
Aqui está uma versão já levemente modificada e lindíssima, para encher a tua quinta de beleza e força: