Pelo direito de termos finais felizes (ou, ao menos, bons finais tristes) – Por Sofia Dolabela
SOLTA O VELCRO é a coluna produzida pela escritora mineira Sofia Dolabela, toda primeira segunda-feira do mês, em que o debate será em torno do tema literatura lésbica — nacional ou não. Aqui, o foco é a produção literária por mulheres lésbicas ou, simplesmente, obras cujas personagens vivenciam a lesbianidade em particular ou o relacionamento entre mulheres em geral. Mas o que importa de verdade é levantar dúvidas e debates muito mais do que trazer respostas ou opiniões formadas e, claro, fazer isso coletivamente, sem medo, sem censura e sem vontade alguma de estabelecer qualquer verdade. Vamos?
Sofia Dolabela é escritora, mineira de Belo Horizonte e lésbica. Sempre teve a escrita como uma necessidade visceral e que acabou se tornando ainda mais urgente depois da compreensão de que ser uma mulher que ama outras faz muita diferença em sua caminhada por esse mundo. Com o objetivo de tornar a literatura nacional mais representativa e de fazer com que outras mulheres como ela conseguissem enxergar a si mesmas na arte, fundou seu projeto literário Em Caso de Urgência (@emcasodeurgencia no Instagram), onde publica escritos autorais que falam sobre a vivência da lesbianidade, com todos os seus prazeres e dores. Além disso, é mediadora no coletivo Clube Lesbos BH.
Para conhecer mais sobre a autora, acompanhe seu trabalho no projeto literário Em Caso de Urgência no Instagram.
***
Pelo direito de termos finais felizes (ou, ao menos, bons finais tristes)
Reivindicar representatividade no cinema, na televisão e na literatura é uma pauta corriqueira nos discursos de pessoas LGBT+ como um todo. Mas, veja bem, existe uma diferença essencial entre representatividade e representação — ao contrário do segundo termo, a representatividade pressupõe que os personagens sejam profundos, tenham uma história e vivência que ultrapassam sua sexualidade e identidade de gênero, que sejam mostrados enquanto pessoas complexas, com motivações sólidas que vão além dos estereótipos.
Por isso, se alguém te diz para pensar em uma lista de filmes, livros, séries, novelas ou o que for com personagens LGBT+, você pode até listar mentalmente mais de vinte, se estiver com tempo. Mas, quando reflete quais deles trazem representatividade, e não só representação, essa lista diminui consideravelmente. E quando, então, decidimos recortar essa lista tendo como base cada uma das letras da sigla, percebemos que algumas saem em clara desvantagem. Se consideramos, por fim, aspectos como raça e classe social… Aí é que piora mesmo.
Esse já foi o tema da Solta o Velcro #1, então não vou me delongar. Hoje, queria conversar sobre algo que diz respeito à minha letra — L — e que, nesse exercício de listar obras audiovisuais ou literárias em que lésbicas aparecem, pode reduzir ainda mais as opções disponíveis: o destino das personagens. Isso mesmo. Desses livros e filmes que você consegue listar mentalmente, em quantos deles as lésbicas da história terminam felizes? Em quantos deles você pode afirmar que a trama não envolve traição, assassinato, suicídio, prisão ou complô para que elas fiquem mais infelizes e marginalizadas do que quando a história começou?
Sinceramente, posso contar nos dedos os livros que já li que representam personagens lésbicas felizes e realizadas em suas histórias — e apenas tive contato com eles recentemente, quando pulei de cabeça na bolha da arte representativa de mulheres que amam mulheres. Muitas dessas obras não possuem estratégias de divulgação para o grande público (até porque, em um mundo lesbofóbico, o fluxo do dinheiro não segue histórias como essa). Por um bom tempo, todas as obras que eu conhecia e que representavam mulheres como eu
tinham finais trágicos e, de uma forma ou de outra, traziam homens héteros para posições de protagonismo.
Naquele velho dilema entre decidir se a arte imita a vida ou o contrário, a resposta correta é ambos. Filmes e livros são feitos baseados em sentimentos reais e têm o objetivo de transportar o espectador ou o leitor para uma realidade ficcional, mas palpável — que podemos acreditar que poderia ser real. Na via contrária, essas histórias ficcionais criam imaginários em quem as consome, reforçando ou enfraquecendo crenças — sempre há uma mensagem a ser passada. Um exemplo claro é a forma como a mídia foi usada para reforçar a propaganda nazista, fazendo com que um regime genocida fosse apoiado por grande parcela da população por anos, e como vários livros foram censurados em determinada época (e ainda são, em alguns lugares do mundo) por questionarem códigos morais e poderem influenciar condutas indesejáveis.
O que estou querendo dizer é que o fato de as personagens lésbicas morrerem no final de vários filmes e livros que se popularizaram não é uma mera coincidência: passa uma mensagem muito clara do tipo de vida que nos é possível. Para nós, não há alternativa para a felicidade, a realização de conquistas, o sucesso.
Para nós, não há a possibilidade de um final feliz.
Por isso, boa parte do debate sobre literatura lésbica orbita em torno da produção de histórias que nos representem enquanto pessoas dignas de alcançar a felicidade, de viver um romance água com açúcar que seja, entre os milhões desses que existem retratando casais heterossexuais, de ocuparem posições de poder e serem bem sucedidas na carreira, de protagonizarem outras tramas que não girem em torno do torturante processo de se entender enquanto uma mulher que ama outra e assumir isso para o mundo.
Até porque, se mais e mais obras ficcionais retratarem esse processo como algo simples e natural que faz parte da vida, talvez ele de fato deixe de ser torturante para outras meninas e mulheres por aí.
Eu luto pelo direito de termos histórias com finais felizes e transformarmos a mensagem que é passada para quem é como nós e para quem realmente acredita que fazemos por merecer tais desgraças. Mas, devo dizer, sou uma grande fã de histórias melancólicas, e também luto pelo direito de termos histórias com finais não tão felizes, desde que eles sejam bem fundamentados. Afinal, somos plurais e complexas, e nossas histórias também deveriam ser assim: retratos das nossas nuances e paradoxos, sem fórmula pronta. Mas a minha luta mesmo é pela possibilidade de navegar pelos serviços de streaming ou pelas livrarias e ter um milhão de opções à minha escolha que retratam mulheres como eu inseridas em tramas
diversas. Porque estou muito cansada de ler um livro com representatividade lésbica não porque ele necessariamente me interessa, mas porque é a única opção. E estou mais cansada ainda de chegar ao final desse livro e perceber que a minha personagem favorita morre.
Recentemente, acabei de ler um livro de uma genialidade tão imensa que já o considero meu novo livro-favorito-da-vida-toda: Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, da Taylor Jenkins Reid. Com uma premissa cativante e uma escrita fluida e brilhante, Taylor nos conduz pela história de uma lendária atriz de Hollywood, Evelyn Hugo, que, já na velhice, decide contar a verdadeira história da sua vida para uma jornalista iniciante e desconhecida. A história de Evelyn é profunda, intensa e humana e traz de forma sutil as tantas violências às quais foi submetida ao longo da vida — e com as quais nos identificamos de tal forma que tive que parar de ler, em alguns momentos, para retomar o fôlego.
É uma história tão complexa que é difícil classificar em termos tão superficiais quanto “feliz” ou “triste”, e por isso mesmo é perfeita para ilustrar o meu ponto aqui. O meu desejo é, de verdade, que um dia as estantes das livrarias estejam abarrotadas de livros que contam histórias de mulheres que amam mulheres em todas as seções possíveis — romance, suspense, drama, ficção científica, fantasia — e que o cansativo debate sobre não existirem finais felizes sobre nós finalmente se encerre, simplesmente porque as histórias sobre nós serão infinitamente plurais e complexas. O meu desejo de verdade é que eu não precise, nunca mais, revirar os olhos ao me deparar com o termo “Gênero literário LGBT+”, como se fôssemos uma só coisa que deve ser separada das outras categorias e não simplesmente uma parte natural delas, como qualquer outra história.
Até lá, vou trilhando o meu caminho por aqui disseminando a palavra de obras geniais como Evelyn Hugo, que transcende maravilhosamente esses incômodos todos que venho discutindo nesta coluna.