Poemas de Edson Cruz
Edson Cruz (Ilhéus, BA) é escritor, cofundador do extinto site de literatura Cronópios e do site Musa Rara (www.musarara.com.br). Estudou música, psicologia e letras. Lançou os seguintes livros de poemas: Sortilégio, em 2007, pelo selo Demônio Negro; Sambaqui, em 2011, pela Crisálida Editora (contemplado com Bolsa de Criação da Petrobras Cultural); Ilhéu, em 2013, Editora Patuá (semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de 2014); O canto verde das maritacas, em 2016, Editora Patuá. Lançou o livro de prosa: Mahâbhârata, pela Paulinas Editora em 2011. Como organizador lançou: Musa fugidia – a poesia para os poetas, pela Editora Moinhos, 2018. E o livro infantojuvenil Trabucada, pela editora Terracota em 2019. Em 2020, lançou Pandemônio [poemas], pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci Blues [uma prosa fractal], também pela Kotter; e A escrita dos ornitorrincos [ensaios críticos], pela Desconcertos Editora.
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Bibliotecas
A biblioteca do pai de Borges
foi o fato capital de sua vida.
Ele nunca saiu dela, disse.
Em minha casa nunca tive livros.
O fato capital de minha vida
é não ter tido pai.
Minha mãe foi minha biblioteca.
Ensinou-me tudo.
Nunca saí dela.
Era analfabeta e deveria
ter se chamado Alexandria.
(do livro O canto verde das maritacas, editora Patuá, 2016)
*
Palimpsesto
toda poesia já
escrita
não se equipara
a toda poesia
inscrita
a poesia jaz.
(do livro Sortilégio, Demônio Negro, 2007)
*
Zoom
Carpe diem.
A vida é
curta.
Carpas riem.
O azul do dia
zune.
O céu refletido
nas águas.
Lume.
(do livro Ilhéu, editora Patuá, 2013)
*
Banzo
carrego em meu lombo
várias máculas onomásticas.
sou Zé, filho de Edward
um desterro sem quilombo
e sobre o nome
a Cruz.
sou nenhum
mulato negro índio
sou ninguém
tingido d’água salgada vindo.
mesmo depois de liberto
com os sapatos a luzir
um ilhéu
que o destino não quis
soteropolitano.
um grapiúna no sul-
maravilha
quase impecável
sem marcas
cicatrizes
não ungido
sem excesso de melanina.
algo assim próximo à matéria
alva que se quer tingir o mundo
visão última, clarão
dos que erraram o alvo
não tiveram sorte
e encontraram súbito
a própria morte.
(do livro Sambaqui, editora Crisálida, 2009)
*
Ânima
dentro de mim há um sol
que arde sem ter fim.
um farol
a iluminar o que há fora de mim.
um escol
a transformar o que toca em marfim.
*
Niké
entre o zênite e o nadir
posto-me aqui sem nada
apenas com um tênis Nike
vaidoso como um faquir.
*
Palavra sagrada
semente do porvir
ave a saudar o nascente:
avenir.
*
Via Láctea
para Neusinha e Serginho
Nas palavras e imagens
da memória, mora
um cosmos.
Um campo de amoras.
O outrora e seu pomar
de estrelas.
O agora e seu aroma
de auroras futuras.
No coração dessa sopa
leitosa, a amizade
que é eterna e sempre
se renova.
*
Pandemônio
as garras da noite infiltraram-se
sorrateiras
na hesitante luminosidade
dos dias.
a lição que nos ensina
com seu manto de névoas
não será fácil assimilar.
em tempos de trevas
mitologias e religiões confundem-nos
ainda mais.
os sonhos foram expulsos
e le cheval noire de la nuit encarcera
todas as imagens luminosas.
o que engendramos em vigília
já não inspira qualquer transcendência.
pode ser que não sejamos mais humanos
e alguma mutação ôntica já tenha
se instaurado.
talvez não seja mais possível zombar
da multidão de deuses
nem esquecê-los.
quiçá tenhamos de lhes fazer libações
para domesticar a legião de demônios
que despencou dos palácios de Satã.
o que se instaurou sobre nós
é o informe Caos à espera
de algum demiurgo.
uma símile corrompida do Paraíso Perdido
com versos que eliminaram
qualquer possibilidade
de redenção.
(do livro Pandemônio, Kotter Editorial, 2020)