Poemas de Matheus Guménin Barreto
Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor mato-grossense (1992, Cuiabá), um dos editores da revista Ruído Manifesto.
É autor de História natural da febre (Corsário-Satã, 2022), Mesmo que seja noite (Corsário-Satã, 2020), Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018) e A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017). É doutor (USP, 2022) na área de Língua e Literatura Alemãs – subárea tradução – com passagens pela Universidade de Leipzig, pela Universidade de Salzburg e pela Universidade de Heidelberg. Teve poemas seus traduzidos para o inglês, o chinês, o espanhol, o alemão, o catalão e o italiano; e publicados em revistas ou antologias no Brasil, na Espanha, no México, em Portugal, nos EUA e na China. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 (França e Bélgica – Universidade Sorbonne) e a Giornata mondiale della poesia 2022 (Itália – Universidade de Roma). Publicou em periódicos ou em livros traduções de Bertolt Brecht, Ingeborg Bachmann, Nelly Sachs, Paul Celan, Rainer Maria Rilke e outros. Entre os cursos que ministra esporadicamente está o “Verso vivo: introdução ao verso livre e ao verso fixo de Shakespeare a Criolo”. Facebook e Instagram: @matheusgumenin // Mais informações e links para a compra de livros em: https://matheusgumenin.com
(Fotografia de Fred Gustavos)
***
(do livro História natural da febre [Corsário-Satã, 2022])
Cuiabá
Perder a cidade na campina inexata
da memória.
Perder a cidade, os gestos de tios, os doces das avós,
a gritaria dos miúdos perder,
perder o cumprimento do
vizinho no mercado,
perder uma cidade e com ela uma infância,
a juventude, a vida adulta.
Perder um lugar que perde em si outros lugares,
perder o calor brando de um quarto azul,
perder uma cidade em cada um que parte,
em cada um que, em parte, mata
quando morre.
Perder inapelavelmente uma cidade,
mas pisá-la.
*
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Vladimir Maiakovski, 1926 (trad. Haroldo de Campos)
É preciso
arrancar futuro
à alegria.
*
Tempo
Aquilo que possuo e me possui,
e que, se cerco, ergue cercos outros
em torno aos muros fracos, muros poucos
que ergui; aquilo que constrói e rui
meu corpo; que já traz numa só mão
meu corpo e aquela morte que é a sua
(se cada corpo nasce já com uma),
meu corpo e aqueles beijos que serão
os seus (se morre sempre sem dar todos);
aquilo, ainda, que me tira tudo
e tudo dá a mim; o que procuro,
mas que me encontra sempre e eu não encontro.
Aquilo, enfim, que dá-me o amor de um homem
de pau em riste – e nos apaga os nomes.
*
o que vale um poema
o que vale um poema
menos que uma greve menos
que o operário menos
do que um grito menos
do que a boca menos
do que um braço menos
que um poema vale um poema bem menos
mais vale um cão vivo
e (quem sabe?) uma república
*
Canis lupus familiaris
cadela chata do caralho
latindo à procura de rosto em noite alta
não encontrarás teu rosto
nem hoje nem amanhã
irmã
minha
*
Mini-história da literatura ocidental – revista e ampliada
(Capítulo: “Os Pobres”)
Domingo. Tarde. Consistório da Matriz.
Drummond, 1979
Eles —————————————————
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————– (eles ———————————-
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————————————————— eles.
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Domingo de praia
Praia de Naufragados
Para Caio Augusto Leite, Luiza Melo e Marcelo Labes
(O sol, ele afia
o limpo do dia
na água do mar).
Os olhos forçando
passagem na lâmi-
na clara do dia
(escuros os ócu-
los), dedos crispando
protegem os olhos,
agarram-se à noite
que há muito escapou.
Debaixo do dia
há o fresco de um tempo
(famílias no ôni-
bus, óculos, cremes,
cachorros que dormem
no colo da moça,
uns risos, uns gritos
cheirando a domingo,
o ronco do ôni-
bus, outro da velha
que dorme no fundo,
a rádio que toca
ninguém sabe donde),
debaixo do dia
há o fresco de um tempo
que, nem já memória,
promete-se e esgarça,
promete-se e escapa
do olho que o vê
(juventude à sombra,
juventude azul).
A tarde adiante
ainda nem vinda
já morre esbatida
no muro do cais.
(Mas, morta a promessa,
a noite a refaz).
*
Só hoje
Um poema no qual se possa entrar
com roupa de estar em casa
com sapato de todo dia, chinelo, descalço
com rosto inchado, cabelo noturno
e no qual se possa sentar, desavisado do sentar, com
um café
ou uma pilha de roupas
no mesmo canto de todo dia do sofá de todo dia
sem susto de visitas
nem de primos indesejados
Um poema no qual se possa entrar
não como vizinho penteado
mas como quem volta pra casa
com as distâncias ainda coladas ao pé
e, na cadeira desconfortável ou na poltrona,
por fim suspira –
Um poema no qual se possa chegar em casa
*
(Quase) mortes
I.
rasgar em uma só madrugada
o que resta de uma infância: perdê-la sob o sol
II.
pegar a xícara como quem tem seus mortos
lavar as mãos como quem tem seus mortos
abrir a janela como quem tem seus mortos
mijar como quem tem seus mortos
dormir como quem já não dorme só mais
depois do morto inaugural
perder posse do que se era
depois do morto inaugural
perder o gesto que era apenas gesto irrepetido
não saudação
não pedido
não suborno do tempo
manchar irremediavelmente as manhãs
III.
penso naquilo que daria pelos amados –
penso em até que ponto –
penso naquilo que sem pedido daria –
naquilo que só com pedido –
naquilo que não daria
penso no inútil da oferta –
penso no precioso do inútil
da oferta –
na pouca mão pouca –
penso na fraqueza de minhas mãos fortes –
penso na fraqueza de minhas mãos jovens –
penso na fraqueza
na força desperdiçada destas mãos –
em si desperdiçada
penso naquilo que faria pelos amados –
penso naquilo que queria pelos amados –
penso naquilo que daria pelos amados –
e não dou
IV.
o descer de xícara de quem ainda tem mãe
(a certeza atrás da nuca, fixa e firme, anônima quase)
o tomar banho de quem ainda tem mãe
o pegar ônibus o dormir o namorar o trabalhar de quem ainda tem mãe
não se recupera?
***
(do livro Mesmo que seja noite [Corsário-Satã, 2020])
toda linguagem é crime
maior ou menor
*
descobrir as palavras eu te amo
pesar na mão cada uma, medir
sua massa numa mão
n’outra
articular a língua os lábios dentes como
pela primeira vez
um homem o fez
um homem o fez a outro homem
testar o que abarca cada letra, o que deixa, o que fala
testar cada som e sombra que acaso fique
nas arestas do a, do e
descobrir as palavras eu te amo
e a violência que é usá-las
*
é lícito um poema onde ecoem passos
de um único homem ou de sua sombra os passos?
é lícito o poema de uns pés descalços, limpos, sobre um
pátio ainda mais? lícito
que água ainda não convexa de toques nem
de rostos outros espelhados que um só rosto, que essa água
reste?
ecos, passos, sombras, pés descalços, toques?
é lícito que haja? é lícito que haja tão rara palavra:
lícito?
é lícito que haja o que haver em versos
como estes
se os tiroteios furam a pele de uma mãe de um pai de um filho e de um que não nasceu e não nascerá num canto escuro qualquer deste país que nem me digno a saber enquanto escrevo um poema sobre escrever um poema sobre um revólver calibre 38 que resolve anular o tempo?
*
lavar da borda em café
da xícara
o lábio amigo e
do prato branco
a mão amiga:
cancelar a parcela de memória
depositada guardada escondida na dobra das horas
– que uma casa, ela é feita
de trapaças contra o tempo.
anular estas xícaras
no irmão predileto do tempo: esquecimento.
apagar os vestígios:
reconhecê-lo vencedor
*
o sexo
devir perpétuo: tempo enclausurado
o amado e seu amado inventam tempo,
corpo, febre
e o que medi-los
***
(do livro Poemas em torno do chão & Primeiros poemas [Carlini e Caniato, 2018])
Oleaje
muro branco
onde os adeuses do mar se recolhem junto à sombra,
salgados e frescos.
*
Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo
– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que busco ou se descubro-me sua caça.
***
(do livro A máquina de carregar nadas [7Letras, 2017])
Para o poema desta página (“Dedicado a Matilde Campilho, que sem saber me ensinou”)
para o poema desta página:
a – abrir a janela mais próxima
b – faltando a janela, criar uma
c – ver: flor. ou muro. ou golfo. ou merda. ou um casal descobrindo o mapa-múndi no corpo um d’outro.
d – repetir os passos anteriores.
*
foda-se
*
Primeiro
O toque mesmo nas coisas
para lembrar as mãos da
arquitetura limpa daquilo
que o mundo gestou.
A mão limpa, cartesiana, reta
pelas coisas
para tirar o pó sobre os nomes
sol, xícara, casca, ladrilho, pêssego, miséria
e tocar outra vez
como no Dia Primeiro
algo dos nomes
que vibre.
*
Neste tempo
Neste tempo de horror
neste tempo
neste tempo sem tempo
de mãos crispadas e inverno nos dentes
de risos que não são
– só o amor que há é o dos bichos
e o das memórias frescas,
recém-cortadas.
*
O nulo poeta/ema
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando hutus exterminaram tutsis
quando tutsis exterminaram tutsis
.
e quando o poeta escreve
[quando tutsis exterminaram tutsis
pecado
pecado
pelo pecado pelo pec-
ado
peca/do
pecado de não saber o que são tutsis
tutsis o que são
o que são tutsis
quem são
hutus
o que
exterminaram
tutsis
e procura onde fica Ruanda
Ruanda¿
e chora de não saber onde fica
onde fica
exterminaram tutsis
Ruanda
– a maioria a golpes de facão.
***
(3 poemas inéditos em livro, publicados no Jornal Rascunho [abril/2021])
as ondas roem a manhã:
limpa de morte: um osso
*
Juízes, III, 22
as tripas de Eglon rodeiam o braço
de quem o fura as tripas gordura excrementos de Eglon tentam
ainda talvez proteger rei Eglon as
tripas de Eglon dançam para fora de sua barriga
e o por do sol nelas se reflete
delicado
a sala ensombrecida não detém
o amor difícil de Aod
e a tocha esquecida de acender não aponta não aponta
o crepúsculo oleoso aos pés do rei
Eglon
o amor sempre encontra seu caminho
e mãos que o tracem
***
Josué, VI, 20
a muralha de Jericó dispersa pelo chão:
cada rosto que se vira
(sombra & fraga
fraga & sombra)
de Seu amor:
cada rosto que se volta
de Seu santíssimo amor
(o anoitecer é rosa e azul):
para longe
do urgente santíssimo amor
(ríctus)
do Deus cocainômano
& só