Poemas de Roberto Corrêa dos Santos
Roberto Corrêa dos Santos (Roberto Cossan) é semiólogo e foi professor de teoria da literatura e de semiologia na graduação e na pós-graduação em Letras da PUC-Rio e da UFRJ, bem como professor de teoria da arte no Instituto de Artes da UERJ. Vem publicando livros de teoria e de crítica, bem como livros de poemas. Dentre os de poemas, destacam-se: Osso carne tendão sopro; Clínica de artista I; Clínica de artista II e o mais recente: Que assim os dias, publicado em 2021, pela Cult Editora.
***
Corpos
Não saberia explicar
o que faziam Júlio e Josv,
quietos, dentro do bar, encostados
junto ao vidro
que permite vê-los daqui
da calçada
onde me encontro.
Há bem meia hora
nada dizem um ao outro
embora se olhem
quase sem moverem os rostos.
Se pudesse levar-lhes à boca
uma sentença
seria assim
– tenho lembranças,
diria Josv. E Júlio diria apenas:
também eu.
Entretanto permanecem
sem pronúncias.
Contemplam-se.
(Mas, no silêncio sabem: houve um antes
em que entregues a
vontades soltas
obtiveram as frases necessárias
ao nutrir de corpos).
*
Maçãs
Oh rapaz entregador de compras
desculpe-me tratá-lo de máscara
contra máscara
e sequer um olhar de gratidão lhe ofereço
esperando que retorne com saúde
a seu posto de serviços
enquanto desinfeto as coisas saborosas
mas de perigos cheias.
Boa-tarde você diz
e eu lhe digo boa-tarde contando
o quanto de gotículas
que das bocas se espalham
nesse encontro breve
entre gentes isoladas
por força de desumanas forças.
Fica com Deus, você diz.
Vai com Deus, eu lhe digo: pois de quem
teremos algum auxílio mágico
senão de Deus?
Some você
com sua caixa de entrega
por dentro do elevador.
Eu, eu vejo se ainda respiro
enquanto luto contra algo
com água sanitária borrifando maçãs.
*
Resposta
O pássaro perguntou à nuvem
o que é a vida.
Em face da pergunta
inesperadamente do pássaro vinda
a nuvem desabou.
Em solo árido toda a água da nuvem
como se um pássaro ali se foi pousando.
Brotos de grãos rompendo-se
viraram arbustos,
de onde sete árvores nasceram
rasgando o capim
que dia a dia se alastra
sobre o piso de coisas viventes
e sem resposta.
*
Nascer
Você de fato quis vir?
Esse perfume foi posto
porque você viria?
Seu olhar de amor
onde e com quem aprendeu?
Ou acaba de nascer agora?
Você se importa com essas perguntas
impossíveis de não serem feitas
por quem já não mais julgava
haver amor singelo?
Você saberia realizar esses gestos
se estivesse em outro lugar
e com outro alguém?
Você tem algo a alterar
nessa história que há dias
conduzimos como se nossa?
Você aceita o escândalo da felicidade
como título de um livro a nascer?
*
Ar
No mundo há gente de alegria intrínseca.
Pode pouco
tal gente de alegria intrínseca
compreender o que se passa na alma
de gente de tristeza intrínseca.
A alegria intrínseca
talvez mais do que a tristeza intrínseca
tem poder de contágio
e de transmissão curativa.
Conheço as duas naturezas de força
e sei que delas advêm obras
de altitudes diferidas.
Os maiores artistas
transitam entre os dois polos.
Ora tocam com a cabeça-toda um polo,
ora tocam com o tronco-todo o outro polo.
Por vezes a um só tempo
estão os maiores artistas no fundo do fundo
das sensações de dor e gozo,
inseparáveis no desamparo.
Dou-vos nomes de homens
nesses dois polos imersos: Kafka, Shakespeare.
Dou-vos nomes de mulheres
nesses dois polos imersas: Clarice, Virginia.
E mais uma: Marguerite.
(Que Deus nos livre
que um dia possa alguém trazer
o nome nosso ou próximo
para esses abismos de ar sem ar)
*
Pântano
Dizes ter um quarto largo
com banheiro largo
todo pronto para mim
naquela área de Paris. No Marais.
Quando estou a dizer irei,
bem aí acordo.
Somente mais tarde
em vigília
vejo estar no sonho
o prenúncio do pântano.
*
Mares
Graças a tudo que há na terra
perdi a memória longa,
declamei.
Há coisas desconhecidas no mundo,
declamei.
Soube que na pobre Belford Roxo no Rio
tem diamantes brutos na forma de gentes,
declamei.
Esmeraldas límpidas
na favela dos Tabajaras eu vi,
declamei,
estando enfim frente à frente
à surdez dos mares.
*
Dor
Uma moeda. Qualquer centavo.
Sobras de comida.
Mesmo a ponta de seu cigarro serve.
Eu poderia estar fazendo
o que não se deve fazer
mas estou fazendo
o que se pode fazer.
Uma moeda,
continua o pedinte, mantendo
a fala sem fim – toda rítmica
e sem dor.
*
Eólico
A garota poeta disse não quero mais,
não quis.
A garota poeta conhecia seu jeito,
deixou-o gravado em toda parte.
A garota poeta lia Drummond e
Plath: juntou-os.
A garota poeta era moderna, a última
a ser consentida nesse hall de elevadores.
A garota poeta tem desprezo evidente,
viram-na cuspir passando com a saia ao vento
no pátio da escola sem olhar
para coisa alguma ou ninguém.
A garota poeta abriu uma porta
a quem quisesse também disparar
seus tambores de guerra.
A garota poeta não era filósofa,
era uma mulher em curso.
A garota poeta intimida
seus leitores homens: algo ali eles
não podem, não têm como pôr a mão.
A garota poeta, de maneira discreta,
exacerba e transborda:
sabe muito sobre o dom do verso.
A garota poeta restou
benissimamente bem na foto e na letra:
poderia rir e ficar, não quis.
A garota poeta é forte: pede mais:
o mais não vem,
daí dizer a garota poeta foda-se.
A garota deixou-se cercar de gentes especiais,
assim não diriam depois
que fora solidão ou desamor, não foi.
Versos da garota poeta são cubistas,
seguem cifrados,
sem esforço maior ou menor para confundir:
mas além do verso
a vida estava sendo cubista
sem que nada pudesse ela fazer
para dar o tom ao quadro:
perdi o domínio da cena inteira ela disse.
A garota poeta está perplexa
com o poema cruel de um corpo e uma janela
por onde se lança:
não vira o destino do traço no ar
nem pensara em efeitos e
teria dito foda-se
sete vezes teria dito foda-se:
dela nascera seu poema eólico.