Poemas para salvar o minuto
“Poemas para salvar o minuto” é uma curadoria realizada pela poeta Adriane Garcia especialmente para a Ruído Manifesto.
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POEMAS PARA SALVAR O MINUTO
“A poesia não salva o mundo. Mas salva o minuto. “
Matilde Campilho
EU DISSE À ÁRVORE
[Micheliny Verunsck]
eu disse à árvore:
me abençoa, árvore,
sê minha avó
minha mãe
minha filha.
sê tu, árvore,
minha ilha de pássaros
e verdes
meu eterno retorno
pulmão e coração
meu berço minha rede.
ela, a árvore,
nada nem disse
e ficou ali naquela existência
sua de árvore
minha avó
minha mãe
minha filha
como todas as coisas são
sem precisão de bússolas
ou outras confirmações.
*
SALMO
[Alberto Bresciani]
Sustentam que os sons seguem
caminho sem fim, sinto que sim,
é o destino das palavras sem volta
que o tempo curto de uma vida
de inseto não deixa que calem
Talvez ainda possamos ouvir
Talvez ainda nos salvem
as emissões delirantes de certos
pássaros, a lírica simétrica
e sonora dos golfinhos
Ainda teremos
cama no inverno.
*
EU BUSCO UM POEMA
[Gustavo Finkler]
eu busco um poema
que me permita dormir.
um poema que diga ao dia:
por hoje já está bem.
um poema
que não fale de amor
e que não passe uma mensagem
para as gerações futuras.
um poema
que silencie os cachorros
e faça parar a chuva.
um poema,
um simples poema
que distribua sorrisos
nas bocas de quem o lê.
um poema que faça
algumas pessoas pensarem
que poderiam tê-lo escrito.
um poema,
uma seleção de palavras
organizadas por alguém.
um poeminha,
um mísero poema
para ser lido acidentalmente
nas redes sociais
entre uma notícia ruim e outra.
eu ando atrás de um poema
que possa me voltar, às vezes,
como uma lembrança boa,
como uma memória alegre,
como um presente ganho em um dia
que nem é o seu aniversário.
um poema
que minha mãe não entenda
e de alguma maneira
se emocione ao lê-lo.
*
LIVRO
Substantivo masculino aqui singular, sujeito a plural
[Ana Elisa Ribeiro]
Objeto controverso, de forma, textura, tamanho
e natureza variáveis.
Quase todos concordam: perigoso. Alguns, extremamente.
Habitam à beira da cama, em mesinhas, cadeiras, banquetas,
mas também em estantes onde se juntam – organizadamente
ou não – a outros, menos e mais importantes, e onde
repousam virgens ou se dão ao deleite,
sendo indecentemente abertos quando se quer.
Reproduzem-se em máquinas que os copiam
à semelhança uns dos outros,
ou de uma matriz, mas desde meados do século XX
vêm se tornando fantasmagóricos,
reproduzindo-se antes de existirem
ou existindo por meio de materialidades instáveis e variáveis.
Sensíveis à água e ao fogo, em vários casos, ao toque.
Duráveis, conforme o cuidado de seus proprietários
ou a fúria censora do momento.
Feitos para conter, para transmitir e
para perturbar, no que têm tido êxito.
*
ANDORINHA
[Rita Santana]
As andorinhas existem!
Saíram das páginas do livro
E resolveram viver
Nas alvenarias
Do invisível.
Mas a tua ausência dentro de mim é puríssima dor.
Não há voo que dissipe minha esperança.
Nem vento, nem rosa, nem crença
Que suavize a melancolia parasita nos ossos.
Alheios desejos nos levaram
Para ilhas opostas:
Tu foste para Creta.
Eu, para o Crato.
E do anonimato dos dias
Tenho feito poesia secreta
E prosadura.
*
A CADEIRA
[Carlos Orfeu]
A cadeira
abraço de madeira
sem saber estala
não o peso de meu corpo
nem movimento brusco
a cadeira é um signo
infinito de leituras
em sua anatomia dura
estala
como grito
por dentro
como osso
explode um poema
no suor das juntas
*
SENTIDO
[Daniella Guimarães de Araújo]
Nenhum céu protege mais que essa casa interna em que habito
nada que eu possa fazer fora captura a paz desse sentido
por isso rego as minhas flores e amasso o pão, separo os utensílios, limpo os espelhos quando turvam
tenho para mim que o amor é de longa fermentação
tenho para mim que atravessar desertos e celebrações
é não mais que atravessar desertos e celebrações
por isso não dependo tanto dos utensílios e dos seres úteis
mas aguardo a poética revelação das coisas
no tempo do resguardo
pois
aprendi com os campos a primazia das sementes
a vida real e quente das coisas que palpitam
é o coração de um pássaro
palpável e próximo da minha mão
o real faz maravilhas que nem se contam
tenho para mim que meus amores descansam do fado e dos fatos
em minha companhia
por isso eu uso a música
que corta na hora os abusos do mundo
por isso reverencio o silêncio
a envergadura dos ventos
a copiosa junta de estrelas sobre as cabeças
tenho para mim que agosto olha para setembro com uma paixão quase carnal e não há mau augúrio nenhum
tudo é necessário nesse encadeamento das coisas
estrume e jardim
eu digo e repito a palavra paixão nas línguas latinas
estou viva
e não há nenhuma atenuante.
*
Adriane Garcia é poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).