Por que ler sobre assuntos “densos”? – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
***
Quantos dos meus irmãos e irmãs
eles matarão
antes de eu ensinar a mim mesmo
retaliação?
(Devo me tornar uma ameaça aos meus inimigos, June Jordan)
Às vezes eu me pergunto (e outras pessoas me perguntam também) por que sigo lendo diariamente sobre assuntos “densos”, “pesados”, “duros”. Esses assuntos são história da diáspora africana, romances biográficos de mulheres negras escravizadas (ou com experiências de exploração contemporânea), teorias em torno de conceitos como decolonialidade etc .
A primeira reflexão que faço tem a ver com injustiça. Como é injusto que assuntos que digam respeito à negritude ou à mulheridade negra estejam no campo do peso e da violência. É injusto também que tenhamos de cavar tão fundo para saber quem somos e como chegamos até aqui. Ao mesmo tempo, é injusto que esses assuntos interessem apenas a uma parcela da sociedade (com algumas poucas exceções), e que esse peso não seja divido e tornado mais leve para todos e todas.
Por outro lado, é apenas através desses conhecimentos, que não estão apenas nos livros, que podemos entender o processo de genocídio da população negra, a situação política da América do Sul, o apagamento da sabedoria dos povos originários. Posso entender também, por que preciso reivindicar meu direito à leveza, ao descanso, ao cuidado. Por meio desses conhecimentos, fabulo estratégias para evitar que espaços dos quais faço parte, como a escola, continuem a fraturar as subjetividades fora do padrão branco-cis-heteronormativo.
A segunda reflexão é bem mais simples: preciso alimentar minha raiva. Se não a alimento, fico apática, sem forças para seguir, sou assediada por pensamentos de “o que posso fazer?”, “não aguento mais ver isso”. Quando a brasa da minha raiva está acesa, eu lembro que a chacina que aconteceu hoje está planejada há séculos, para que, de tempos em tempos, se reafirme da maneira mais nefasta possível quem são os donos do poder. Quando a brasa da minha raiva está acesa, eu lembro que não posso me afastar da história coletiva do meu povo. Quando a brasa da minha raiva está acesa, eu lembro que a leveza não vai vir fácil, não importa o que eu decida ler/ouvir/assistir.
Eu quase não escrevi este texto, quase me condenei por girar em torno do mesmo assunto, quase adiei novamente a publicação da coluna. Eu fiquei calada por uns dias, estarrecida, apavorada. Mas a brasa da minha raiva foi novamente acesa e, para atiçá-la ainda mais, é preciso escrever.