Posfácio de Cândido Rolim para “Algo chega tarde demais” de Ricardo Pedrosa Alves
Cândido Rolim, poeta, crítico, advogado e fotógrafo amador, nasceu em 02 de março de 1965 em Várzea Alegre / CE, Região do Cariri. É formado em Direito pela PUC de Porto Alegre/RS. Tem publicados alguns livros: Arauto (Edições Dubolso, Sabará/MG, 1988), Exemplos Alados (Letra e Música, Fortaleza/CE, 1997), Pedra Habitada (AGE, Porto Alegre, 2002), Piedra Habitada (Amotape, 2014, Lima, tradução de Oscar Limache e Alfredo Ruiz), Camisa qual (Éblis, Porto Alegre, 2010), Orumuro & Remerzbau (Butecanis, Florianópolis, 2017, parceria com Ronald Augusto e Ricardo Pedrosa Alves), Sutur (Texto Território, Rio de Janeiro, 2018). Reside atualmente em Fortaleza.
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Algo chega tarde demais e o paradoxo da queda
Ricardo Pedrosa Alves, a quem classifico como poeta crítico, no sentido de promover agudas imersões nas poéticas contemporâneas aqui e em outros países, bem como por conviver de forma vivaz com as leituras e recepções das literaturas apagadas pela estridência colonial –, apresenta-nos em seus livros recentes traços que diversificam ainda mais o espectro de sua produção sob o ponto de vista formal. Neste trabalho, diversamente do anterior (Poemas baseados, 2018), o autor, transitando entre o rigor e o onirismo, é radical também no descarte da gestalt tradicional do poema como lócus costumeiro do “poético”. Sabemos que, nos mais variados campos e suportes onde aparece a alusão “poética”, esta vem como que involucrada num pressuposto confortante, espécie de feudalização do processo criativo que passa a ideia da linguagem poética como um tecido idealizado sem fissura ou descontinuidade. Sim, a rigor um poema não necessita de reiterações talvez porque a própria escassez de elementos definidores comunica bem ou mal sua teia de impossibilidades.
O nível de inserção fruidora e crítica que Ricardo Pedrosa Alves emprega em seus percursos de escritas e leituras o coloca na categoria dos poetas mais atentos às grafias contemporâneas e passadas, a ver tanto pelo leque de performances alcançado em seu livro anterior, como agora com este Algo chega tarde demais[1]. O trato intenso com essas poéticas de diversas dimensões etnográficas a cujo estudo se dedica, não o afastou de extrair desses múltiplos veios novos elementos revitalizados e caros para o presente: a resistência vista aqui em sua mais radical e autêntica acepção, tal seja, a recusa de simbologias lacrimosas e reverências inibidoras das ações ou o romantismo utópico que leva a um inoperante desespero sem eco, agora sim com a reinserção do corpo à cena utópica da linguagem: “É preciso apresentar o corpo ao poema e vice-versa”.
O presente conjunto, a meu ver, felizmente é avaro no enfrentamento metalinguístico. Ricardo Pedrosa Alves, frustrando-nos sutilmente qualquer satisfação semântica, adverte que “o poema fica exatamente vazio ao terminar”, acenando para a “iluminação significativa do ser, quando algo se explica sem pergunta” – “o êxtase e o pasmo nunca são nomeáveis”, uma espécie de advertência xamânica e corporal. Com essa expressão o poeta nos arremessa a uma espécie de o(m)nirismo crítico, cujas referências não são facilmente detalháveis de plano.
Numa mirada de conjunto, nota-se que o autor parte inicialmente de estruturas quase oníricas até chegar a composições timbradas em expressão social ou pública, no sentido também de planos mais abertos. A alusão que faço a elementos cinematográficos (logo cinéticos), deve-se ao fato de os textos de Algo chega tarde demais gradativamente assumirem a vertigem compositiva de um corpo (ou uma ocular) em queda livre. E aqui um dos motes do livro: a vertiginosa exposição de planos e contraplanos criados por um olho numa espécie de volúpia do descenso em que, paradoxalmente, o chão não parece ser ainda o fim da vertigem, mas algo que chega tarde demais (ou não chega).
Por conta disso não se vislumbra no conjunto um plano-sequência, isto é, a queda livre sacrifica o encadeamento da sequência em troca de uma vertiginosa reprodução de detalhes que o corpo histórico utiliza como ancoragem possível na materialidade do universo em que está inserido. É o poeta mesmo que nos informa sobre esse “algo que nos empurra à queda sem nunca contar sobre o impacto”. Portanto tem-se o corpo moldado na própria vertigem de orientar-se em uma mobilidade sem ponto de chegada, atrelado a essa “queda que nunca termine”.
Consta que Gilles Deleuze pensou os filmes de Visconti sob a percepção de que “algo chega tarde demais”. De fato, fosse fazer um paralelo “cinematográfico” com alguns operadores da imagem eu arriscaria em Agnès Varda e Luchino Visconti, pela sutileza e sagacidade com que mostram os corpos imersos em suas circunstâncias históricas, seu drama social. Nessa percepção de um tempo em defasagem, ressalta-se o acúmulo histórico exigindo o dizer. Assim, a segunda parte do livro de Ricardo Pedrosa Alves parece compor-se de poemas mais afirmativos. No poema que abre com “VÊ-LO carregado em pelo”, ancorado no documentário ABC da greve (de Leon Hirszman), o texto parece eviscerar o enredo, melhor, pinçar do conjunto de imagens cinéticas (fotogramas) a dura verbalização social do conflito – eis a leveza que faz o olho e a mente transitar do visto ao arcabouço social em que se dá o drama humano. Essa a leveza que faz o poeta contextualizar ou lembrar o incômodo de nunca se desvincular um compósito de imagens do prurido histórico e vivencial que lhe dá textura e densidade.
No poema sobre Lula, quando o poeta se propõe a ver e tocar premeditadamente o social, não abdica da delicadeza de atentar para cada vinco do enredo (a história e a História, o poema e o documento), lançando uma luz crítica (“iluminação significativa”) e celebrante sobre a fala e o movimento político desses corpos, como faz aqui nesse poema-filme.
A rigor, ao fim do livro, não estamos mais rendidos ao fim de tudo. Vê-se que os “corpos com história”, não estão resumidos no engessamento contemplativo. A linguagem poética decide ir a contrapelo de todas as ameaças e decretos, estando quase ínsita a potente ideia de soerguimento: “TODO poema deve nascer num sonho e crescer como uma estrada”. Refere também o autor, como que saboreando o abismo inverso de um arremetimento de voo: “enquanto houver queda, cair”. O poeta parece nos dizer (e desafiar) de soslaio – “o poema começa quando termina”, indicando o continuum contraditório do texto poético, não rendido à apatia ou emudecimento ditados pela política do atalho ignóbil.
Detecto aí um paradoxo da queda, à maneira de antiplanos que se sucedem no trajeto de uma queda, numa fala acossada pelo abismo – o silêncio?: uma fala sempre abismada pelo que virá. Nesse sentido, pode-se dizer que Algo chega tarde demais trata de uma narrativa mais pressentida que sentida. O que leva ao seguinte paradoxo: a vertigem da queda comporta estágios inomináveis, uma autêntica sermonística da brevidade e do desapego extremo, ou seja, o discurso articula-se na vertigo de campos semânticos que quase se sobrepõem. Embora a queda (não adânica, não luciferina, não redentora) seja o plano sintagmático desses poemas, o trajeto crítico-linguístico comunicado pelo poeta, em movimento inverso, contraria a agonística de um corpo submetido ao descenso, isto é, à proposta fatalista desse “algo que nos empurra à queda, sem nunca contar sobre o impacto”.
Valho-me, por fim, do lugar comum ao falar que os textos de Ricardo Pedrosa Alves pedem várias leituras. Todavia, é inevitável que o convívio com os poemas vá revelando que o pasmo inominável referido pelo poeta tem muito ou tudo a ver com o tempo presente que nos embrulha, que nos outorga tão somente ilusões de respiro, o que impõe momentaneamente o curvarmo-nos para um novo arremesso.
Fortaleza/CE, maio/junho de 2020.
[1] Ricardo Pedrosa Alves – Algo chega tarde demais. Curitiba: Editora Medusa, 2020.