Prelúdio do fim
O calendário diz que já é primavera por aqui, porém, é difícil acreditar com o tempo feio e frio que tem feito. Se perde em pensamentos a caminho do trabalho, como se fugir para um mundo paralelo a livrasse da rotina, o tempo não exerce poder sobre ela. Nada importa, nada muda, a não ser o clima que já não lembra em nada o de quando era criança. Folheia o livro que a acompanha tentando se desvencilhar de seus pensamentos. Em alguns momentos se sente tão pequena diante da imensidão dessa cidade que chega a ser absurdo pensar em suas dores, já não se lembra de quem era quando chegou aqui há anos atrás, lembra somente que não era comum frio nessa época do ano. Talvez esteja ficando paranóica com as estações do ano, assim como tem ficado aflita com o sumiço da dona Rita do 204. A senhora de quase 70 anos era a única amiga de Clarissa na vizinhança, a única referência de segurança que tivera desde o primeiro dia na cidade grande. Segundo o Carlos, porteiro do período da noite, dona Rita foi visitar os netos no interior e talvez fique alguns meses por lá. O barulho das pessoas ao redor a desperta de seus devaneios e por alguns segundos consegue enxergar a paisagem lá fora, observa o trânsito caótico, a cidade melancólica no horizonte e acredita que talvez Deus tenha abandonado essa cidade. Como se acreditasse em poderes divinos!
_ Céus! Como posso ser tão desligada?
Ela quase não acredita que perdeu seu ponto, o que, na verdade, aconteceu algumas quadras antes. Desce apressada do ônibus, agora está atrasada, odeia estar atrasada e a sensação de impotência que a invade nesses momentos. Como gostaria de não ser obrigada a trabalhar num dia como esse, adoraria ficar envolta em seu edredom, ouvindo Piaf, apegada a algum livro enquanto o dia caminha de encontro à noite. Essa era sua tradução de felicidade, uma casa invadida por uma melodia familiar e um aroma de café, uma história acolhedora e lembranças. Apesar de ter vivido uma vida quase na sua totalidade repleta de agruras, ainda acredita que possa existir alguma recompensa por vir, não sonha mais, só não consegue abandonar a velha esperança no sofá. Ensaia sua entrada no escritório, esse é um dos lugares em que se sente menos confortável e a sensação de pânico ameaça percorrer seu pequeno corpo.
“Eu preciso me controlar, manter a compostura, eu preciso me controlar”.
Fala consigo mesma, como se para se prender a realidade. Paralisada, tomada por um pavor repentino, tem o corpo e a mente em estado de alerta. Já não consegue identificar em que rua está, é como se esse pedaço de memória tivesse sido arrancado dela em frações de segundos. Pensa em pedir ajuda à algum desconhecido, entretanto, já nem sabe onde quer chegar. Confusa, acende um cigarro enquanto tenta organizar os pensamentos, se sente nauseada. Em absoluto estado de abandono observa as pessoas passando ao redor, perdida entre duas esquinas não faz a mínima ideia de como sair dessa encruzilhada. Seu pequeno corpo treme, não pelo frio, mas pela completa ignorância do que está acontecendo.
Resolve caminhar sem rumo, talvez ache alguma paisagem conhecida ou até mesmo relembre o caminho para o escritório, não que realmente queira ir para lá. Acende outro cigarro, um trago forte desce rasgando a garganta, que é seguido por outro trago fundo, gostaria de poder aliviar a mente agora, mas é tudo caos e prelúdio do desconhecido.
Observa a tempestade se formando por entre os arranha-céus, se lembra que estava pensando o quanto é estranho esse tempo na primavera, talvez o mundo tenha enlouquecido. Não sabe ao certo, é que nada é como antes. Se sente esmagada pela cidade, como aquela igreja entre dois prédios do outro lado da rua, como se mesmo depois de todo esse tempo não pertencesse a esse lugar. Perder o caminho para o trabalho é agora o menor dos seus problemas, precisava colocar ordem em seus pensamentos.
É quase impossível não notá-la. Impaciente, a moça caminha por quase duas horas de um lado para o outro. Visivelmente perturbada por alguns demônios, parece não notar a presença das pessoas que tentam socorrê-la. Alheia a tudo e a todos, parece presa em algum estado de transe, balbucia frases indecifráveis, ninguém consegue se aproximar. Seu olhar é tão triste e negro como a tempestade que se formou no horizonte. Tem medo de não encontrar um lugar para se abrigar, não é sua vontade agora ficar presa em meio à uma tempestade nesse momento.
“Eu preciso de um lugar para me abrigar”.
Caminha apressada pela rua, passos cambaleantes em direção a lugar nenhum, um vento forte a faz arrepiar, começa a chover e não há para onde correr. A água gelada corta seu rosto e se mistura as lágrimas, entra em desespero, quer gritar por socorro, nem saberia por que clamar. Ela sente a chuva lavando seu corpo e levando embora todo resquício de consciência. É o fim da linha e ela não sabe mais para quem voltar.
Fotografia: Maia Flore