Quatro minicontos de Rafael F. Carvalho
Rafael F. Carvalho (São Paulo, 1978) é autor dos livros de contos A Estante Deslocada (2011), A Cor do Sal (2013) e Terceiro Livro (2015) pela Patuá. Bambuzal pela Moinhos e do libreto O Bico do Pássaro da Coleção Leve um Livro, ambos de poesia. Bacharel em Letras pela USP, mestre em Edição pelo Cefet/MG. Colunista da Revista Samizdat desde 2012. Tem textos publicados em antologias, jornais e revistas literárias (Suplemento Literário de Minas Gerais, Germina, Mallamargens, Jornal Relevo, entre outros).
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Andando pelas ruas, perdi total interesse nas pessoas, seus rostos; nos carros, em suas cores, fábricas, formas. Tampouco o céu, suas nuvens, seus azuis durante o dia. Me importo em notar apenas o preço dos combustíveis nos postos de abastecimento. Fico a decorar onde estão os melhores preços, onde a gasolina e o álcool estão mais em conta para que ali eu possa sempre abastecer e recomendá-los à minha esposa e meus amigos. A beleza da vida, agora, é manter sempre tudo funcionando. Que me serve olhar para o céu se há um boleto em meu bolso? Só que quando eu o pago, o céu fica ainda mais azul, os homens e as mulheres mais sugestivos, e os carros, mais rápidos e barulhentos…
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Liguei-me a você como a uma tomada. Onde liga a força de um autorama. A força do sonho, da projeção do futuro. Nosso amor é brincar de autorama, nós dois. Essa inocência, conservada, é o que temos para nós. Meu amor, por ti, é amar com gosto. Como na infância.
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Uma vez me perguntaram por que eu gostava dela. Eu disse que um dos motivos era por ser uma pessoa solícita. “O que significa solícita?”, ouvi. Pensei um pouco, e lembrei dela me ajudando a arrumar a casa, antes de eu esboçar qualquer pedido. “É uma pessoa que faz favores sem você pedir”, respondi. Ela fazia parte da agenda da casa. Ela morava dentro de mim.
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Saído da adolescência, minha mãe pediu que déssemos todos os nossos brinquedos. Alegava que estávamos adultos, que não tinham mais serventia. Sugeriu que fossem doados ao orfanato do outro lado da rua. Empolgados, juntamos as sacolas de brinquedos: muitos carrinhos, soldados, veículos de guerra, aviões, jogos, e os levamos para a instituição. Não sei por que dois deles não foram, um daqueles robôs que viram carros e um carro de fórmula um. Eles não estavam junto dos outros na hora, estavam soltos em outro lugar. Nos dias seguintes, não dei bola para eles, mas ao perceber o valor de suas presenças, guardei-os furiosamente. Estão aqui, ao meu lado, décadas passadas, em outra cidade, os únicos objetos restantes da infância. Vruuummmm!