Quatro poemas de Alexandre Pilati
Alexandre Pilati nasceu em Brasília – DF em 1976. É poeta e professor de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília UnB. Publicou quatro livros de poemas: sqs 120m2 com dce (NTC, 2004); prafóra (7Letras, 2007); e outros nem tanto assim (7Letras, 2015) e Autofonia (Penalux, 2018). Mantém desde 2010 a página http://www.alexandrepilati.com para divulgação de alguns de seus trabalhos.
O poema “Dicotomia” foi publicado em Autofonia. Os demais são inéditos.
***
Fantasia
Num tempo como este,
é talvez inesperado
que os bois sambem.
Mas, não custa reiterar,
os bois sabem sambar,
sabem que há urgência em balançar.
Pouco lhes importa o ano.
Podem fazê-lo, bovinamente,
a qualquer hora.
Inclusive num ano como este,
que passa de improviso
sobre nossas cabeças.
E não precisam de avenida:
os bois fazem de qualquer pasto
o seu sambódromo.
Quando sambam os bois reiteram
o peso que carregam, peso que é
o ser boi em meio a tantas coisas sutis.
Derivam, às vezes, do samba
ao frevo e ao axé, mas seguem,
com disciplina, amassando o capim,
que é seu lugar, seu combustível,
sob os pés, ao redor da língua
e, é claro, entre os dentes muito lerdos.
Como se fosse o seu tempo
o mesmo das lesmas, os bois cantam
marchinhas e sambas-canção
em seu carnaval feito de câmera lenta.
Nos bois, a lentidão é uma lei
que não se revoga por qualquer folia.
E lá vão os bois em seu bloco,
como se dentro de um aquário
em que a gravidade assumiu vida própria.
E lá vão os bois em seu samba
com seus olhos tão tristes,
que nenhuma alegria transitória
é capaz de conspurcar.
Esta, de fato, a lição do amplo gado
que, no entardecer feliz
de uma terça-feira gorda,
desliza quase a fórceps
na paisagem:
os bois, ao sambarem,
não deixam jamais de ser bois.
Ruminam, mugem e pastam.
Esta é, dizem os cientistas,
a parte melhor
da sua lúcida e silenciosa
fantasia.
*
Bate outra vez
ei pombos de aço
de pedra que habitam
elétricos dentro do meu peito
aquietem-se acalmem-se
esta gaiola de carne e pejo
prende-os e todavia os ama
juntos vamos ao fim do caminho:
é certo é justo eu quero e eu preciso –
sem estes arrulhos sou uma coisa sem revolta
mas não vistam tantas patas de cavalo
não cisquem não sapateiem tanto
assim as cãs do meu coração
prestem atenção neste corpo
de pinho que vem agora ao meu socorro
sintam este abraço de calma
em que me segura o violão
com que disfarço o desespero
em que me abrigo do tempo
não pesem tanto
não bulham: “é pau, é pedra,
é o fim do caminho”
é apenas outra espessa promessa
de vida leve pra quem sente
saudade de ser apenas passarinho.
não pesem tanto
não bulham: “é pau, é pedra,
é o fim do caminho”
é apenas outra espessa promessa
de vida leve pra quem sente
saudade de ser apenas passarinho.
*
Rainha
ramona bate na cara
rabisca na cara
a navalha
porque não sabe
escrever de outro jeito
ramona te quebra
o nariz te leva a carteira
te rasga o rabo as vestes
te mata até a alma
e sabe que foi golpe
ramona ri
ramona tem pinto
usa turbante
pode ficar de pau duro
lhe falta dente
lhe alegraram as flores
o sangue ela limpa
ramona é humana
é a rainha da república
o país e nossa miséria
estão nos músculos
tristes do sorriso
arrasado de ramona
“no dia que sonhei
quis mudar meu nome
pra Vera mas desisti:
ramona é mais a minha
cara, cara de rainha”
*
Dicotomia
O corpo:
cápsula de angústia
em que o tempo ganha
forma.
A alma:
válvula de escape
em que o tempo foge
da forma.
E eu lá no meio, sem dialética, sem saber que diga ou faça!
Joelhos e sonhos no milho da dicotomia.
Corpo de castigo, dividido; alma fechada, a céu aberto.