Quatro poemas de Ana Rüsche
Ana Rüsche. São Paulo, 1979. Publicou os livros de poesia Rasgada (Quinze & Trinta, São Paulo: 2005), traduzido e publicado no México (Ed. Limón Partido, Cidade do México, 2008, trad. Alberto Trejo e Alan Mills), Sarabanda (Selo Demônio Negro, São Paulo: 2007), que recebeu uma reedição pela Ed. Patuá (São Paulo, 2013), Nós que Adoramos um Documentário, ganhador do ProAC (Ed. Ourivesaria da Palavra, São Paulo: 2010) e Furiosa, edição comemorativa (ed. autora, 2016). Em prosa, publicou o romance Acordados (Ed. Amauta, Brasil: 2007), também premiado pelo PAC, Secretaria de Cultura de São Paulo e Do amor – o dia em que Rimbaud decidiu vender armas (Ed. Quelônio, 2018). www.anarusche.com
***
campos de lua
noite noturna
o vermelho é a única cor
o resto não tem gosto
e pode começar a correr
pq eu vou te carnar
vou te carnar
e te botar meu espartilho
de costelas emprestadas
avalanchar os demônios
que moram dentro das minhas
asas cortadas
vou te carnar
e te cheirar a sangue
pele pelo cigarro
te lanhar as tatuagens
corpo a corpo poro a poro
ponto a ponto
vou te carnar
até vc existir
diante de mim
noite noturna
o vermelho é a única cor
[poema publicado na Antologia de Poesia Primata, São Paulo, Edições Primata, 2018]
*
o corpo é um corpo
o corpo é um campo
de batalha
se diz faca diz faça
se diz toque diz toca
esconde encolhe esconde
meu campo é um campo
de batalha
de apanhadores
e quando se dirá
amanhecer flauta
águas-vivas líquens
piratas areia quente
cavalos grávidos de mar?
: mais que nada se dirá
quando
um corpo for um corpo
um corpo for um corpo
um corpo é um corpo
um corpo é um corpo
[poema publicado em Furiosa, São Paulo, edição de autora, 2016]
*
testemunha nº 4
essa nunca foi eu, ana. mas sempre quis.
a menina dos olhos amendoados também não tirava a camiseta.
a outra-menina caminhava miúda, fingindo conchinhas imaginárias
na faixa molhada, escura. os meninos idiotas já gritavam japonesa nadadora
nada de peito, nada de bunda, era nem era nada daquilo, mas não sabia
queria é ter logo 60 anos e ser a mulher que anda com a mão pra trás.
minha avó só fala num português errado e fez bolinho de chuva
ela tá chamando. era bolinho de arroz, mas esqueci. vou fingir
63 anos, ando com a mão pra trás e não entendo
nenhuma palavra de português, nada.
*
testemunha nº 3
sou é a menina cor-de-rosa e passo hipoglós no nariz
quando não chove, marca de tribo selvagem, uns surfistas.
a menina-cor-de-rosa usa um chapéu tão grande
e fica lendo gibi na cadeira, morre de medo
dos meninos bonitos, com hipoglós tem medo,
que eles a olham muito. eles enxergam através
dela, como se fosse uma água-viva em água muito limpa,
as paredes de seu corpo translúcido e transparente,
eles nunca a enxergam.
mesmo com aquele chapéu tão grande
como quem volta da guerra nas roupas do inimigo.
e a menina cor-de-rosa queria logo o fim
das semanas, o fim do mundo, e se ameaçava nas histórias em quadrinhos.
nos pés sem hipoglós, umas queimaduras, de tanto aos chutes fazer
a areia branca cantar.
[Os dois poemas foram publicados originalmente em Nós que adoramos um documentário, São Paulo: Ourivesaria da Palavra, 2010.]