Quatro poemas de André Luiz Costa
André Luiz Costa (1991) é de Porto Alegre, formado em Letras pela FAPA e mestre em Escrita Criativa pela PUCRS. Atualmente, mora em Curitiba e trabalha como editor. Ciclo neon é seu primeiro livro.
Todos os poemas abaixo são do livro Ciclo neon, publicado em 2021 pela editora Bestiário.
***
introdução
água corrente desgasta rochas num processo
que tem início antes dos antepassados
e que não acabará depois da morte
deixando o minério mais liso e a água mais densa
porque testemunhamos a erosão na beira do rio as janelas são inúteis
dormimos cinco horas até soar o primeiro alarme
não sonhamos com as notícias e acordamos sabendo
que pelo sol a água evapora da pele formando nuvens opacas
tratamos a chuva agora como nossa relíquia
o abraço como único privilégio além do trabalho
oferecido em troca de alimento e dias festivos
nas largas avenidas descalços dançamos no asfalto
por semanas limpamos a fuligem dos novos museus
e tiramos pó de objetos desconhecidos
às vezes quando anoitece escutamos um som de máquina
choramos em silêncio nostálgico das histórias antigas
*
persona
da infância nem pele nem osso
não sentimos piedade
o soco
primeira impressão de força
no mundo
da infância avaliamos o estrago
cavalo sem pernas
lixo concentrado
obsessão da parede a tinta
descasca
da infância linguagem
energia térmica
granizo
pasto onde bois matam
o tédio
da infância certeza
de morte
tardes passadas
no chão
a terra ainda original
da infância tragédia
que desconhece
amargor inexplicável
as ruas
têm nomes de generais
da infância fruta
apodrecida
casca de ferida
rarefeita
mandíbula deslocada
da infância sentimento
fósforo riscado
incêndio
cama convulsa
do corpo
*
obra completa
qual vínculo entre a superfície tediosa da noite
e as palavras que durante o dia erguem torres
provocam deslizes ou comunicam
a poeira entrando pela janela
você pergunta se gosto de história
se foi minha matéria favorita na escola
pra mim história é igual à respiração
invariavelmente acontece dezenas de vezes por minuto
opto sempre pelos dias que posso testemunhar
acabarem de uma distância segura
quando anoitece sinto que voltei pra casa
protegida da infância
mesmo no incêndio salvaria apenas você
que ainda ganhará medalhas em torneios de esgrima lotados
você que observa a rotina com binóculos
admirando na memória a repetição
um dia não amanhecerá outra vez
saberemos enfim a obra completa
*
noite
deserto circular reconstruído com neon
matéria perfeita de tudo que acabou