Quatro poemas de Anna Maria Moura
Anna Maria Moura é artista marginal que desenvolve pesquisas em relação à literatura (Poetry Slam) e audiovisual negro, culturas de periferia (Batalhas de Rima) e demais intervenções artísticas urbanas desde 2018. Possui formação em Teatro com ênfase em Iluminação Cênica pela Unemat e é graduanda de Rádio e TV pela UFMT. Atua no Coletivo de Audiovisual Negro Quariterê desde 2017. Participou como produtora do curta Como ser racista em 10 passos de Isabela Ferreira.
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De quando Ananás era flor
Sou fulô,
Fulô do cerrado
Sou mar
Maria e Sereia
Mareia ô Mareia ô
É água do mar..
Eu me refaço na curva dos abraços e sorrisos trocados
Nas cunversas, nos causos e tragos…
Me traz mais um pouco de afago
Que por vontade própria eu deito e ralo
Formo imagens na minha cabeça
Se a tua é estreita, se é de direita
Não vem me tirar de sexo frágil
Que eu não sou apenas boceta.
Já falei pra tu que eu sou sereia,
Navego e remo profundo
Meu culhão não é só luto
Meu coração fala de amores e lutas
Meus versos cantam pros meus antepassados terem orgulho
De ver mais uma preta sem pedir licença pra entrar, sem exitar
Tornar-me minha própria melodia
É isso, eu sou mais uma Maria
Que ginga no dia a dia pra não virar apenas mais uma estatística
E saio de cada lugar de cabeça ainda mais erguida
Pois cada cicatriz me tornou a mulher que me orgulho de ser
Eu sigo no corre pra valer
Pq cresci sendo subjugada pela minha cor
E não é assim que quero ver meu filho crescer…
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Nó(i)s na pista
Alegria de mãe é ver o filho indo pra escola com a mochilinha nas costas, perspectiva de agora arrumar um trampo que dê pra pagar uns planos.
Chega de prantos, que a distância causa saudade, mas o dinheiro ajuda a pagar alguns sonhos e a apagar alguns danos causados pelo vício incessante de estar sempre no limite do sono do corre pra lá e pra cá,
Mas eu digo a eles: não se faça de sonso!
É que minha orelha esquerda não cansa de ouvir mais uma porta se fechando, mais um telefone no gancho sempre que elas falam que têm um filho em casa esperando, seja na entrevista de emprego ou nos encontros cotidianos.
É por isso que rola um choro toda vez que danço
Mas a gente finge de forte, que nem doeu e pronto.
Nos ensinaram a escrever pra gente sair rimando histórias do que a gente desbravou lutando
E eu sei que são medos tantos
Já tive medo do olho de gato me lamber a alma
Já tive medo e dormi às acesas na madrugada
Sem colo de mãe, beijo de boa noite ou luz no fim da pista
Na última entrevista disseram a Maria:
– Mais uma querendo ser artista?
Voltou pra casa, abraçou a cria e escreveu esta poesia.
*
Lição de Casa
Cícero entrou pra escola, mas o dever de casa de hoje era meu,
me perguntava o motivo da escolha do seu nome e com quantos quilos nasceu.
Me questionava ainda o que senti quando fiquei grávida e a deusa que perdoe, mas só faltava aquela clássica de se o pai ajuda ou ajudava.
Me pedia gentilmente que eu respondesse prontamente qual a primeira letra ele tinha mandado e quando havia sido os seus primeiros passos.
Resgatei na memória coisas boas e más da violência ao nascer e das dores de amamentar.
Relembrei também de abandono outros, dos amigos de rolê que no pós-parto sumiram todos.
Busquei na linha do tempo algo que me desse acalento, mas com 20 e poucos anos, pra mãe eu não tinha nenhum talento.
Continuo sendo a tal mãe, mesmo sem o tal do talento vir
Assim como tantas outras marias compulsórias a parir.
Sociedade desigual, uma das poesia que mais gosto da minha mana pacha é aquela que ela fala que pras pobres chá de canela não resolve o mal, pra ricas até consultório chique e tal.
Tamo numa sociedade onde homens governam e se o papa fosse mulher, se o papa fosse mulher, o aborto até seria legal, seria a lei etc e tal.
Mas não quero nessa poesia só falar de desesperança, quero falar de coisas que busquei na tal lembrança.
Cícero nasceu com 3 quilos e pouco, no dia dez do doze de dois mil e quatorze. Adora bolo de aniversário e se lambuzar de doce.
Com quantos anos ao certo ele aprendeu a andar, eu agora não vou conseguir lembrar.
Mas sei que o BTS ele gosta tanto de dançar e já tô até vendo daqui pra frente que a tal da veia artística ele tem no olhar.
E pra encerrar, ele já tem 5 anos e daqui uns dias a história dele é ele próprio que vem aqui no Slam contar.
*
Má terna-idade
Nos muros, nos outdoor, nas propagandas nos pregam modelos de liberdade…
Liberdade é ter, liberdade é consumir mas não aceitam uma mulher livre de um homem ou casamento
Principalmente quando ela tem quase trinta e carrega um filho pequeno
Chamam-lhe mãe solteira
Como se seu estado civil definisse sua condição maternal ou sua carreira
E se ela escolhe não ser mãe
É chamada de egoísta
Mas se é mãe so-lo
Carrega o dobro de peso nas costas
Ela que foi abandonada pelo parceiro, e é nela a culpa que a sociedade bota
Ninguém cobra não aquele bródi que não ajuda e não paga pensão…
E o jogo segue assim,
Pra elas a culpa, pra eles a desculpa.
As tias, as avós, as mães delas quase surta, quando pra ajudar em casa elas ainda trabalha e estuda.
Se ela é casada e o marido não ajuda
Só não é chamada de puta
Mas também é sozinha nessa jornada dupla.. múltiplas…
Aguenta os perrengues e quando o filho fica doente se culpa por cada dor que ele sente.
O patrão acha que ela mente se entra com atestado do filho novamente.
A vida segue e não perdoa
E tem sempre aquele “gente boa” que nunca aparece pra visitar ou ajudar
Mas acha que tem direito de perguntar com quem ela deixou a criança pra vir aqui falar, como se fosse louca.
Ah a deusa que abençoa, mas um dia ainda eu vou ver chamar de “mãezinha” e levar dois soco na boca…
Metaforicamente viu
É que meu desejo ardente é ver uma lutando e defendendo a outra com garras e dentes,
Pra no final dessa poesia juntas sermos mais fortes nas batalhas do dia a dia.
Maria ajudando maria!
Companheiras, cumades, manas e amigas.