Quatro poemas de Anna Maria Moura
Anna Maria Moura é artista marginal, mãe, trabalhadora, negra feminista, produtora, diretora de arte (no curta-metragem Como Ser Racista em 10 Passos [2018]), libriana com ascendente em capricórnio que, quando tira um tempo, brinca com luzes, fotografias palavras e rimas. É também estudante de Rádio e TV na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso, aprendiz de Iluminação pela MT escola de Teatro e membro do Coletivo de Audiovisual Negro Quariterê e do Zebra Filmes. Ganhadora de dois Slam de Poesias na cidade de Cuiabá, no momento peleja em rimar no improviso na Batalha das Minas. “Se a loucura me habita, a poesia é que me devolve a sanidade”.
***
Sobre o meu amor
Meu amor não é puro e queima
Meu amor não é mudo
Porém calado, me erra e teima
Tira e transpõe os tampões da minha cegueira
Não me guia, nem orienta
Mas me move e acalenta
Neste ritmo de surdo
Não vê e nem repara que te quero bem
Mas que eu não te trago o bem
Que pensando em mim, você só pensa em…
Que minha boca nervosa só pensa em arrancar teu beijo… hein…
Que felicidade é pegar voo na saudade que vem
Num fim de tarde maroto
Igual seu sorriso bem garoto
Me deixando sem noção de tempo
E é o calor que me faz perder a cabeça e marejar os olhos
E se te ligo à tarde, louca de saudade
É que não cabe em mim mais tanta vontade
Quando paro pra dizer coisas clichês que tu já sabes,
Não é pleonasmo, amor livre que é,
E não é por acaso
Que o nosso voa pra voltar quando quiser,
Quando der vontade.
Junto a gente é chave…
E quando embarco, da janela da nave,
É no teu nome que eu viajo bem plena e suave.
Eu não vejo a hora de te ver e ser de novo clichê,
Ao tentar cantar um trecho da música do Roberto pra você,
“Abra os braços pra me guardar, que eu hoje vou lhe entregar começo, meio e fim
E a minha cuca ruim…”.
*
Preterimento, solidão,
hipersexualizada,
mas não assumida pra família
ou nos rolê pros amigão.
Interrompida desde aos 10
Conturbada aos 27
Violências e abandono
Já virou até novela das 7.
E o peso da defesa vale mais do que o ataque
Se o meu peso te incomoda
Minha lágrima pesa tonelada
Porque clara e salgada mesmo é a minha ira
e a minha raiva.
Caber aos teus olhos não me redime
E só estraga essa parada
Eu tô falando é de vivência
Coração que rima o que pensa
A mente articula essa levada
A boca diz essa sentença
Eu sou fulô desse cerrado
Eu mesmo irrigo os meus vasos
Inflo, incho, encharco o solo
O meu prazer não será dado
Nem tomado
Se quiser, vá conquistá-lo.
Eu decido sobre o meu corpo
Terra à vista é o caralho
Eu sou sereia desse asfalto
Não tô na pista pra negócio
Eu não faço seu jogo sujo
Viro seu barco num estalo
Tô pra fazer perder a linha
Sem precisar baixar calcinha
Já dizia Áurea Maria
E essa rima acredita
É o que me move dia a dia.
Eu me alimento de amor próprio
E dos amores que em mim brotam
Mas se tu me fazer de otária
É suas asinhas que eu podo,
Tempero e frito
Me nutrindo de autoamor e autonomia.
Eu dona de mim
Neguinha, sim
Mas não tua,
Nem de quem quiser passar a perna em mim.
*
Antes o seu desprezo era sobre o meu peso
Depois veio o peso da minha idade
Mas, não cara
Eu não sou mais aquela ninfeta no auge da sua puberdade,
facilmente manipulada e acreditando que desprezo ou ameaça é amor
Não que as novinhas de hoje
Não cheguem com os dois pés no peito do sujeito que acha legal insistir sim quando ela tá dizendo não.
É que eu também tenho respeito pelos meus processos
E sei que com pouca idade nem sabia dessa possibilidade…
Ouvia tudo calada
Vivi solidão a dois nas madrugadas
Por vários de vocês fui humilhada, rejeitada
Logo por você que só cola pra pedir voto ou pegar droga na minha quebrada
E sempre fizeram eu ter vergonha do que eu sou (favelada)
Pra vir depois me falar de amor próprio. Ah, por favor
Eu me refiz em mil personagens pra fugir de mim mesmo, mas eu sempre tava ali
Cabeça afoita cheia de ideias
Pros pela saco eu sou pocas ideias
Porque falar gíria até papagaio fala
Mas ser margem social não é só fumar brau…
Foi o que falou Nany Nine, a MC da Crew que manda a real
E não me leve a mal
É que eu tô com sangue nozói tipo Zózimo Bulbul.
É que esse seu sistema eurocentrado me animaliza e me tira de burro.
Me hipersexualiza e me culpa pelo estupro
E é por isso que ainda hoje muitas vezes tenho medo de revidar o assédio,
aquele toque sem consentimento, aquele ar constrangedor e intimista,
fetichista que me chama de vitimista.
Minha vontade mesmo é gritar machista, racista.
Mas Lady Laay me ensinou também a nem gastar saliva com essa fita.
Os que fala mal de nóis,
nos vira as costas e sai andando,
quem é do bonde a gente fica, se emancipa junto e constrói,
porque pra desconstruir eu deixo pros tilelê e pros playboy.
Sem tempo pra desconstruir,
eu vim foi demolir, já dizia Aurea Maria
E ceis vão ter que engolir.
*
Maternidade
Nos muros, nos outdoors, nas propagandas me pregam modelos de liberdade…
Liberdade é ter, liberdade é consumir.
Mas não me aceitam ser uma mulher livre de um homem ou casamento,
por estar quase chegando aos trinta e ter filho pequeno.
Se ela escolhe não ser mãe é egoísta,
se é mãe solteira carrega o dobro de peso nas costas,
de ter sido abandonada pelo parceiro e a culpa que a sociedade bota, é só dela.
Ninguém cobra não aquele bródi que não ajuda e não paga pensão…
E o jogo segue assim, pra elas, a culpa, pra eles, a desculpa.
A mãe quase surta, ela ajuda em casa, trabalha e estuda.
Se ela é casada e o marido não ajuda,
só não é chamada de puta,
mas também é sozinha nessa jornada dupla… múltipla…
Aguenta os perrengues, o filho que ficou doente,
e se culpa por cada dor que ele sente.
O patrão acha que ela mente
quando entra com atestado do filho novamente.
A vida não perdoa e tem sempre aquele “gente boa”,
que nunca aparece pra visitar ou ajudar,
mas acha que tem direito de perguntar com quem eu deixo a criança,
como se eu fosse loka.
A deusa que perdoa,
mas um dia, eu ainda soco um pé na cara dessas pessoas,
que não fortalece o rolê,
que não tá junto na hora do vamo vê
E ainda acha que tem direito de ditar como devo criar, como devo fazer…
Quem ajuda no corre, não tá reclamando
E se eu for falar de tudo que me incomoda na maternidade,
eu vou levar um ano.
Então encerro meu verso,
mas sigo lutando, amando e sonhando
com dias melhores pra todas que transformam suas dores em luta,
suas lutas em arte e seguem nas suas labutas batalhando…