Quatro poemas de Camila Rodrigues
Camila Rodrigues nasceu em Belém do Pará e criou-se próxima dali, na periferia de uma pequena cidade: Ananindeua. Graduou-se em Comunicação Social pela Universidade da Amazônia (Unama) e, atualmente, além de escritora, trabalha como redatora publicitária em São Paulo, onde radicou-se na Vila Mariana. É a criadora do projeto “Deixo Poesia”, que espalha poemas e flores pelas ruas da capital paulista. Participa do Clube da Escrita Para Mulheres desde 2017, participou do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE) de 2019, organizado pela Casa das Rosas. Mergulho no Anticéu (Editora Penalux), livro de poesia, é sua obra de estreia.
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TODOS OS RIOS CONVERSAM EM VERSOS DENTRO DE MIM
Todos os rios conversam em versos dentro mim
agora que a boca não está ferida, rachada pelo silêncio
de carregar o peso de um funeral inteiro de palavras não ditas
Todos os rios se beijam quando cruzam suas confluências dentro de mim
agora que lavei o sangue endurecido sobre a minha carne gelada e fúnebre
que não cheiro a chorume de dias vazios
Todos os rios correm fluidos dentro de mim
agora que escoei as lágrimas endurecidas na alma
que vomitei minhas correntezas pesadas e fortes
Todos os rios rimam em notas altas dentro de mim
agora que estou longe do raso
imersa nas minhas águas calmas
*
PARA AS MULHERES QUE SANGRAM TODO MÊS
Mesmo que a alma padeça
mesmo que por dentro se afogue
é você que levanta com as pálpebras pesadas
os olhos inchados e os lábios secos
com o corpo enfermo às cinco da manhã
Mesmo que a dor grite
mesmo que a conta esteja no vermelho
mesmo que a cicatriz não se cure
é você que limpa suas próprias sujeiras
com o suor dos dias cheios e pesados
Mesmo que os outros te assustem
mesmo que arranquem suas verdades
mesmo que o desespero chegue
é de você que jorra o sangue entre as pernas todo mês
entupida de remédios para mascarar o corpo exaustivo
Mesmo que o caos te invada
mesmo que a pressão te cause calafrios
é você que desafoga os caminhos
que rompe as camadas
que projeta a vida no escuro
É você que acorda outra vez nesse corpo para continuar
*
RAÍZES DA MATA
Foi lá que criei minhas resistências
com as raízes da mata perfurando a palma do pé
com o sol queimando as chagas
no calor dos dias enlatados por pratos de feijão e arroz
Foi lá que dei meu primeiro grito de subsistência
com o corpo molhado pelo cansaço de resistir
cruzando os olhos feridos de insônia e fome
entre as casas de palafitas na beira do rio
com o cheiro do pitiú grudado na pele
que acorda os corpos cansados de madrugada
que saem para caçar suas sobrevivências
Foi lá que eu decidi não matar minha luta
que combinei com os olhos famintos
de não morrer silenciada pelas vozes lá fora que esbanjam
seus excessos que nos faltam
Foi lá que regenerei minhas dores em carne viva
que chorei de medo e de vontade de viver
Foi lá que flutuei minhas confusões pesadas
naquela imensidão de florestas que acalmam
e parem meninos afro-indígenas
pessoas invisíveis e marginalizadas
bocas sujas de açaí e peixe salgado
Foi lá que me transformei em árvore mulher
com as raízes e a força do povo Kayapó
*
FÔLEGO DE FERRO
Estar submersa
exige esforços que dão cãibras na alma
mas quando se está a metros de
profundidade de si mesma
o fôlego já ganhou resistência
já criou suas próprias armaduras
e mesmo que os gritos lá fora
assustem de vez em quando
o fôlego resiste
luta
quem diria que os lodos entranhados na alma
me dariam um fôlego de ferro