Quatro poemas de Cândida Almeida
Cândida Almeida (1980- ) nasceu em Belo Horizonte (MG) e vive em São Paulo (SP) desde 2002. Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), é especialista em Semiótica Peirceana. Graduada em Jornalismo (PUC Minas), atua como professora universitária na área de comunicação. Começou a publicar seus primeiros poemas no blog pipocos.com, projeto que abriga parte de sua produção poética multimidiática até hoje. Quando fronteira (Patuá, 2019) é seu primeiro livro de poesia, tendo sido selecionado no 1º Edital de Publicação Livros para Estreantes da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo em 2018.
Com 72 poemas, distribuídos em 112 páginas, a obra oferece um contexto poético de percepção das várias formas de passagens que se revelam na travessia da vida e no próprio exercício literário. Explorando recursos visuais, fotografias e à frente do próprio projeto gráfico e diagramação, a autora preparou um livro em que a criação literária em verso está justamente na interface com a poesia visual. O livro explora especialmente o tema da fronteira. Fronteira como um tempo de passagem, como espaço de transformação do humano, da vida, da sociedade e do mundo. Fronteiras não demarcadas, de bordas opacas, sem contornos exatos, cujos campos se misturam e se interceptam.
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refúgio
invento formas
invento encontros
invento sentidos
desejos
medidas
como me caber?
invento retiros
invento histórias
invento tempos
palavras
desculpas
como me dizer?
invento rupturas
suturas
abismos
desvios
estradas
invento
.
.
.
invento mergulhos
voos
repousos
riscos
ciladas
invento
.
.
.
invento entender
invento memórias
sonhos
delírios
remanso
querer
!
?
*
fagulhas para o dia
indecência
incerteza
angústia
melancolia
fagulhas para o dia
loucura
devaneio
livros
sabedoria
fagulhas para o dia
crenças
desistência
força
euforia
fagulhas para o dia
desejo desenhado
discos
nostalgia
fagulhas para o dia
amor
ou só delírio?
cama
anatomia
fagulhas para o dia
quereres por demais
caneta
covardia
fagulhas para o dia
anseios
analgésicos
cigarros
cafeteria
fagulhas para o dia
desande
desordem
des-
incêndio
água
fria
*
substância
preciso de ar
cheiro de mato
lavar d’alma
caudal de cachoeira
preciso do céu
luzir das estrelas
corpo na pedra
pairar na noite
preciso de chão
cravar meus pés
entranhar-me na terra
preciso de sopro
esvoaçar os cabelos
poeira no corpo
visita interior
preciso dos pios
rastejos na relva
ouvir os relinchos
assentar o juízo
preciso de um raio
de sol no orvalho
de chuva no céu
oferecer calmaria
virar nossa vida
de volta à origem
ficar ao relento
verter meu sossego
acalmar minhas horas
preciso dos sons
do estalar da fogueira
recobrir lua cheia
entre afagos amigos
*
dessabida morte
a morte não foi feita para ser entendimento
a morte é dessabida
cheia de desrazão
foi costurada para ser aguentamento
bordada de interrogação
esquisitice essa de morrer
logo ser o mais lembrado
mais vivinho na querença
de viver aqui do lado
até aguento que se foram
só não sei bem lá por quê
por que é que caminharam
antes de mim
e de você
?