Quatro poemas de Isabela Penov
Isabela Penov vive em São Paulo, é atriz, poeta e educadora. Lançou o livro de poesia Aves Marias (ou A Revoada) em 2019, pela Editora Patuá. Tem colaborado em revistas literárias e dedica-se também à poesia falada, com vídeos disponíveis em seu canal Semeaduras no YouTube.
***
VÓS SOIS O SAL DA TERRA
I
sem pássaros no alto
sem peixes no asfalto
ele cega, para e prega
sobre o Cristo
para as coisas
da cidade
Sorri para as baratas
benze imundas pelúcias
e discursa
para as latas
(as latas
entendem melhor que os homens
os trechos que tratam
da caridade)
II
Fedendo a mijo, encardido
de séculos de poeira
e sujeiras variadas
que lhe adubam as chagas
ele sobe na carroça de entulhos
entre os barulhos do trânsito
e prega em transe
para os cães que lhe seguem
famintos, transidos de frio
Fala de Maria, mãe de Jesus
Fala de Jesus, filho de Deus
Fala da cruz e de seus
milagres
e em lágrimas
Fala de Maria, sua mãe Maria
que ficou, quando ele partiu
carregando a cruz da fome
Fala de seu filho, seu filho sem nome
que partiu, mas não ressurgiu
no terceiro dia
e foi aí que ele se partiu
em mil
e, partido, seguiu
caminhante num sempre
adiante por anos
e anos, por vidas
e vidas, por prantos
e prantos
maturando na dor
maturando na dor
até virar santo
*
CONTEMPLAÇÃO
I
Como não fosse o menino um ser suficiente
perguntaram-lhe:
o que gostaria de ser
quando crescesse?
Os olhos brilharam:
– Frentista de posto!
Mas, menino!
(Queriam saber
o porquê)
Ah, é que aí eu podia
ficar o dia todo
in-tei-ri-nho
olhando
aqueles baita carrões
passando
passando
passando
bem ali
na minha frente
II
pobre não pode sonhar
pobre não pode
pobre pode ser pobre
sonhar não pode
sonho de pobre nasce podre
sonho de pobre nasce vencido
sonho de pobre fede
o sono esmaga o sonho do pobre
esmaga duas vezes o sonho do preto pobre
esmaga três vezes o sonho da preta pobre
o sono esmaga o sonho
que se deita desacordado na cama pobre do pobre
pútrido esgotado esvaído em gotas de suor
o sonho escorre se desmancha nesse rastro
deixado pelo pé pobre do pobre
pobre não pode sonhar
pode querer, no entanto
e então penetram suas retinas carros, casas, corpos, coisas, coitos
tanta gente-coisa
querendo tanta coisa-gente
o pobre quer.
pobre não pode sonhar
pobre só pode querer
o pobre quer tanta coisa tanta coisa
carros, casas, corpos, coisas, coitos
coitado está
constantemente fodido
nesse interminável coito forçado
com o capital
com o capitão
estuprado em silêncio
escancarados seus orifícios
por onde espiamos
quimeras
que aguardam
o que aguardam?
*
12h
Nessa maldita marmita sem mistura ele remexe o que atura todo dia: é meio-dia, arroz, feijão e agonia requentada, remexida, revirada nos sacolejos da vida: restos de ontem, carne fria de segunda e na segunda a sua carne sente o açoite e a ferida. A vida amarga sem tempero e o dia inteiro, o dia inteiro na cabeça ecoando a voz matuta: “ a vida é luta, a vida é luta”, já dizia sua avó, e aquele nó bem na garganta não desfaz, mas disfarça a cada passo a vontade de gritar. Farinha seca terra seca gente seca sua terra sua gente e a saudade lentamente triturada entre seus dentes: palita os dentes com os ponteiros do relógio, cospe o ódio, engole o ócio e canta um verso, num minuto que sobrar. E ao fim do dia, desde o peito, à revelia, como quem devora o dia uma pergunta lhe consome:
Quem
escolhe
o que come?
Em meio a ordens tem que mastigar a vida, digerir toda a comida, as feridas mais doídas, sua classe e sua cor. Uns comprimidos, a tevê e a bebida não dão conta de prender e segurar dentro do peito esse viver doido e estreito de trabalho e desamor.
E então, ele vomita.
Ele vomita cada dia então perdido, os pedidos que não fez, os sóis e céus que não viu, as paisagens que perdeu, os minutos que engoliu. Em meio à bile, escorreram da sua boca dois mil sóis meio apagados, paga dos dias passados que ele nunca viu passar. E foi cuspindo um duro grito sem medida, umas lágrimas contidas, todas as contas vencidas e as que nunca vai pagar; suas olheiras, a xepa do fim da feira, a canseira, a bebedeira, uns trocados amassados da carteira, a chuteira pendurada, a bem-amada que se foi sem ter porquê; o sonho esquecido no bolso, o peito inteiro revolto e uma vida por fazer. Quando garoto sucumbiu ao desatino, vendeu o sonho-menino por moedas no batente. Ingenuamente, achou que vender os sonhos lhe traria outra vida de comida mais decente. Sem esperança, esqueceu que foi criança, e entrou na contradança da máquina de moer gente.
Toca a sineta então na terça como um tiro de escopeta no seu peito de poeta que não foi – e nem será. Abre a marmita mirrada de todo dia, arroz, feijão e agonia todo dia a lhe gastar. E num lugar onde ninguém sabe o seu nome é que ele come, mas a fome lhe consome ao fim do dia. Dentro do estômago e do peito ele tem fome, mas não é fome de pão: é fome de poesia.
Entre o arroz e um pirão meio mal feito, a barriga a mente, o peito roncam a dor que carcome. E ao fim do dia, desde o peito, em rebeldia, na garganta, à revelia uma pergunta lhe consome:
Quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come quem escolhe o que come
quem escolhe o que come
quem
escolhe
o que
come?
*
A IMPOSSÍVEL CANÇÃO DE NINAR
(Inspirado em Georg Büchner)
era uma vez uma menina que não se chamava
que ninguém chamava
(ela não tinha nome)
uma menina que não morava em nenhum lugar
ela não estava nem permanecia
ela não tinha vizinhos não tinha pai nem mãe
uma menina que não nasceu, não foi cuspida, esculpida ou
escarrada, nem no lixo nem no mármore
era uma vez uma menina que não respirava, que nem o ar lhe passava
que não dizia nada não ouvia nada
ela não tinha voz nem ouvidos
uma menina que não era menina
uma menina que não dormia nem acordava
ela não tinha olhos ela não via nada ela nunca viu um chapéu
nem um passarinho nem sapatos nem criança
uma menina que não tinha tripas
não tinha estômago
nem rim nem coração
ela não tinha nada
uma menina que era um monte de nada e de nunca
nada e nunca
dentro dela num monturo
no meio do dentro que não tinha fora
era uma vez uma menina que não chorava
não brotava água dela
uma menina que não ria não tinha força para um espasmo
de gargalhada, não lhe saía força
uma menina que nunca incomodava
ela não tinha mãos nem pés nem cabeça
ninguém via
mas pairava, uma presença
menina –latrina
menina-asfalto
menina-caminho
menina-da-guia
Menina?
ela nunca viu a praia nem a rua
nem a lua e nem o sol
(será que a praia a rua o sol a lua viam a menina será?)
ela não tinha brinquedo nem amigo
ela não ouviu uma história nem música ela nem sabia
o que era música ela
não ouvia história ela não tinha
história nem estava numa
(só nesta, agora)
era uma vez uma menina que não olhava pela janela ela
não tinha casa nem quarto e não tinha portas
ela não ia nem vinha
iam e vinham e passavam por ela e ela nem
e quem passava nem também
ela não comia não tinha dentes nem saliva
uma menina toda vazia que não parava em pé
ela nem tinha pés
uma menina que era uma fome
ela nunca gritou nunca gritava. nada vibrava nela
ela não via a cidade se movendo nem roupa no varal nem
trem nem bicho nenhum nem
nuvem nem corda nem terra nem margaridas nem
uma menina que era uma coisa – se você visse, uma coisa!
mas era coisa sem nome sem forma sem cheiro sem nada
era uma vez uma menina que não tinha nada uma menina que não tinha nome
e não foi aí que nada
não foi nada
nada veio
era uma vez uma menina-paisagem mas os olhos não viam
era paisagem de viagem, que corre e desmancha, desmancha
e vai embora, e vai e nunca se pode lembrar
uma menina que se confundia com tudo o que não fosse menina
foi uma vez. uma menina que continua aí tão sem, nas outras
ela não termina
era uma vez uma menina que não tinha começo
era uma vez a menina
que não tinha
mais fim