Quatro poemas de Iuri Freire
Iuri Freire, nascido e criado na zona oeste do Rio de Janeiro em junho de 1987, é cientista social, agitador cultural, poeta e funcionário público nas horas vagas.
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Eram belos os peixes
Neva em agosto
e a minha boca tem a sede da alvorada
Fazemos planos de fuga para idiotas modernos
e anotamos receitas de tortas salgadas & manuais de sobrevivência na sua agenda
de capa ocre
“A América do Sul não é assim tão distante”.
você pensa
E eu sei disso porque você sabe que eu sei disso
E sabe também do meu método de deliberar
sobre a urgência da calma como forma de aplanar nossos vícios
e enjaular as virtudes mútuas que brincamos de esquecer
Eu gostaria de escrever sobre pássaros
e arranha-céus
mas só sei versar sobre assassinos em série
e a anatomia dos artrópodes
Eu gostaria de recordar da tarde em que
bebemos conhaque à luz de vela nalguma
praia deserta do Mediterrâneo enquanto
assobiávamos secretas canções aos peixes
que por lá estavam
(Eram belos os peixes como são belas as canções)
Eu gostaria de traduzir a vastidão sacra do seu
umbigo de Pandora para alguma língua morta
Eu gostaria de transmutar os seus gritos de cólera
em sinfonia barroca
(Eram belos os peixes, são estranhas as canções)
Eu gostaria de reinventar a tempestade febril
que habita a sua saliva
Eu gostaria de não desejar a finitude das horas
e o desvario dos passos que compõem a sua morada
Ainda neva
Desenhamos castelos no chão da cozinha
enquanto rimos silenciosamente de nosso
delírio cotidiano
A porta se abre
Não importa quem foi
O seu vestido brilha opaco tal qual a nevasca
Juntamos as mãos e eu gostaria de desejar
que a sua saliva tivesse a natureza da tempestade que a habita
Mas não há mais tempo
Os relógios adormecem sob as azaleias do
jardim
(Estão mortos os peixes, são ordinárias as canções)
*
Sentinela
Quando os cavalos eram asas
você só almejava morrer
ou plantar bromélias nas garagens dos edifícios
A juventude é esbelta
você pensava
Os automóveis são velozes
você pensava
Os cientistas são capazes
você pensava
(Mas almejava morrer)
Quando os cavalos eram asas
a sua boca deglutia escorpiões
e as suas feridas eram chagas mal paridas
e brilhantes
secretamente brilhantes
de uma incandescência atroz
quase bela
Você queria falar latim
e entender Pitágoras
Queria reinventar fonemas
Queria sacrificar os pombos da Candelária
Queria afogar anfíbios
Queria compreender a cólera dos monges
(Mas almejava morrer)
Quando os cavalos eram asas
as suas pálpebras resvalavam o ressoar do infinito
e o céu era apenas um nome
*
O Equilibrista
Sentado à beira da corda-bamba
observa cambaleante
o grandioso espetáculo que se apruma:
O suicídio das andorinhas
*
Arquipélago
I
São cinco da manhã no litoral
e o Pacífico aturde a temperança das ostras
mas você não se importa
porque as suas costas agora ecoam como gigantescos sinos que anunciam a aurora
e os seus pés escavam as areias gélidas à procura de precipícios submersos
a sua busca
tal qual estrelas
jamais terá fim
II
O flagelo das horas envenenou as escamas da sua epiderme
mesmo ferida você almejou voar
Admirei sua coragem
desejei sua perseverança
evoquei a clemência de deuses pagãos
em troca recebi a tormenta
finalmente decaímos
III
Ao cair
descobrimos de que substância torpe
se constitui o exoesqueleto dos falsos heróis
e da estranha matéria que dilacera a natureza dos sonhos
matizamos o horizonte
IV
Por fim
as asas de um albatroz errante rascunham
os invisíveis alicerces que tecem o seu despertar
Você é tão leve quanto o silêncio das nuvens