Quatro poemas de J. Carlos Teixeira
(1992- ) J. Carlos Teixeira tem publicações de poesia em Portugal, Brasil e México (Enfermaria 6, Tlön, Lluvia oblicua – Poesía portuguesa actual, Subversa, Curupira, Gazeta de Poesia Inédita), tendo também publicado traduções de poesia alemã contemporânea para o português. É um dos co-fundadores do projeto A Bacana e colaborador regular da plataforma Enfermaria6. É mestre em Literatura Alemã Medieval através de um programa conjunto entre as Universidades do Porto, Bremen e Palermo e atualmente doutorando em Estudos Literários, propondo-se a editar, traduzir e estudar as cantigas trovadorescas alemãs (‘Minnesang’).
Os poemas “[a herança que o franz me deixou]” e “Autobiografia” foram publicados em Terceira Margem (Enfermaria6), os demais são inéditos.
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a herança que o franz me deixou
por ordem cronológica
uma lapela uma bússola um poema épico ocidental
combinou bem quando
o meu amigo quis morrer com leituras à virgem
eu lia muito a mulher náufraga do afonso x
cânticos de santa maria memórias medievais
mas ele era muito mais ovidiano e já via um certo amor no pré-cortês
apaixonei-me pelo ventre das ondinas tardias em línguas vulgares
ele ria sempre e falava qualquer coisa em latim ou grego antigo
dizia-lhe que era bom imaginar o cheiro depois das pescas feudais
mas franz não queria ser apenas deus romano mitológico de corno duro bem içado berço fundador
dar grandes banquetes ao som da tíbia
beijar penélope em vez de isolda
ser césar em vez de charlemagne
no outono dizia-me muitas vezes
queria um barco para conhecer a europa um vinil para a rota um quadro de hemingway
eu achava isso tudo meio tosco e cliché
um homem da antiguidade que não cedia que não lia romance arturiano fazer-se passar por moderno
aquele gostinho por grandes barbas flores nos cabelos belos gorros e tricot
ele que sabia de supinos e ablativos comia um abacate todas as manhãs
cá para mim isso não era coisa de deus romano mitológico
era coisa de mortal da nova geração
mas ai de mim
se virar a coisa do avesso
diga-se em verdade
tinha um certo encanto de que não se podia desdenhar
um moço de cachimbo na mão
gabarolas dos anos noventa
do tamagoshi às suas artes no photoshop
com a sua roupita emperiquitada
e de analógica ao léu
igualmente mestre na harpa e na declinação
a falar de telos logos ethos pathos
eu que de pathos só entendo no arroz
quão homérico
e afinal quão mortal
dado a posteriori e in loco
ficou provado no seu interrail
afogando-se o meu amigo
nas ondas do mar da tailândia
a fazer jet-ski
*
Armstrong
O espaço não tem lugar para
a confusão dos meus braços sobre
um sustenido ombro
perdido na galáxia
O espaço precisa de homens firmes
que entendam de fotometria –
não me querem
eu só conheço os dedos trêmulos
segurando um telescópio barato e ridículo
no meio de uma floresta apagada
imaginando-me Armstrong
O som do trompete nunca chegará à lua
nem mesmo os vestidos de verão
que orbitando nas praças
apertam as cinturas
superbreves seminovas
e sem asteroides
das mulheres
O cosmos não tem lugar para
o vácuo do universo dos nossos corpos
e na minha estação espacial faz-de-conta
vejo os pequenos passos dos homens os grandes passos para a humanidade
enquanto vertiginando com medo de cair da terra
do lado de cima desta
árvore de verdes rosas vermelhas também
penso para mim mesmo
what a wonderful universe
*
Autobiografia
o iogurte está fora de validade
acabou daqui a três dias
alguém roeu o meu lápis quem roeu o meu lápis?
meu deus o cozinheiro não usou touca
desculpem amigos
o passeio foi cancelado
é culpa do meu reumatismo
não senhor
não é mania
é certo que é arritmia
contou-me o doutor
eu não consigo respirar
eu sei o que é
é cancro
eu li
é avc é enfarte é ataque cardíaco
queimem o bicho a ferro
não me convidem para banhos turcos
montanhas nudistas
não tenho tempo para hipotermia
preciso de ir à rossmann comprar desinfetante para as mãos
tenho medo de wc público
e de wc privado também
hoje acordei com o meu gato nos lençóis
toxoplasmose esporotricose
praia dá micose
não me tragam bolo
tenho diabetes
acabou o sabão acabou o detergente
não fui eu
sei as listas todas
conheço probabilidades
noventa e sete de constipação
trinta e nove de tumor
e é exponencial ao mês
trinta e sete graus é febre minha gente
o colesterol está alto
perdi a pulsação
oiçam-me
não se desenganem
eu sei de tudo
autocarro fechado dá gripe
dá hepatite
e mosquito dá dengue
até em Portugal
*
O poeta entrou
sozinho na confusão
Faltou-lhe mesura
ao convidar para o salão
Faltou-lhe mesura
faltou-lhe tesão