Quatro poemas de Jansen Hinkel
Jansen Hinkel nasceu em Capinzal, interior de Santa Catarina. Tem 30 anos e mora em São Paulo desde 2015. Formado em Cinema, atualmente faz doutorado em Comunicação Audiovisual, em que pesquisa os espaços (geográficos e metafísicos) cinematográficos do Oriente Médio. Busca uma literatura de impressões poéticas abstratas com narrativas cotidianas, a relacionar uma tônica política (nem sempre) com certa sensibilidade doméstica e intimista. Entre contos e poemas, que escreve pela vida, no momento organiza seu primeiro livro. Publica seus contos, poemas e experimentações visuais na página Histórias para o bode dormir: https://medium.com/@jansenhinkel
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Paralisia do sono
paralisar no sono
ver alguém à porta
um monstro de olhos verdes
e dentes afiados:
não há saída
se está amarrado à cama
o remédio não funcionou…
esqueci de tomá-lo noite anterior?
ou deixou de fazer efeito?
como fugir?
e se de repente mudasse de ideia,
já que sei que é sonho.
se de repente conversasse
com os olhos verdes de dentes afiados
o que aconteceria?
farpas de madeira entrariam na gengiva.
unhas cresceriam uns dois metros.
eu transaria com familiares próximos.
vomitaria cálcio e areia.
as basculantes seriam entradas pra morcegos hematófagos de três asas e focinhos gêmeos.
um vidro começaria a falar sobre filosofia cartesiana.
os mares seriam ondas de mortos-vivos a bater nas pedras e estilhaçar cérebros.
o teto se encontraria com o chão.
eu comeria a própria língua.
a linguagem tornar-se-ia dimensão alienígena plasmática.
a prataria da cozinha iria pra sala de estar e tocaria Dvorak no piano de cauda.
os garfos brigariam com as colheres para que os concertos de Brandenburg fossem censurados.
reticentes, as formigas abandonariam o açucareiro.
meu cachorro morreria de raiva e comeria as próprias patas.
o trinca-ferro na gaiola, bem, o pobre pássaro continuaria o mesmo, já acostumado com a loucura.
e eu logo acordaria
porque nada disso é importante.
*
Mitologia
Se eu me deixasse
O que sobraria
No deixar
Um círculo vazio a ser
Preenchido
De mais inúteis
Produtos técnicos
Para que eu não conseguisse
Me deixar de fato?
É possível deixar-se?
Esquecer os papéis colados na parede
A porta que abre e fecha
As roupas a vestir
As atenções
Os malditos livros
As malditas notícias
Esses exageros dos monstros
Dos heróis
Das músicas de salvação
Esses exageros de gostar muito de algo
De odiar uma coisa só
Essa coisa da raiva de querer ser algo sem nem mesmo saber o que se quer ser.
Veja por exemplo:
O menino sem chinelos que pede dois reais no metrô.
Minha mãe aos seis anos a limpar banheiros pra comer dois ovos mexidos divididos entre quatro irmãos.
O casal de mendigos a dividir cachaça acusando um terceiro, o amigo, de ter rateado cinco reais pra comprar um maço de cigarros.
A humilhação no colégio que o menino com síndrome de down teve que passar, por ser obrigado pra conseguir nota na apresentação do dia dos pais, e ele nem tinha pai.
A menina que se mudou de cidade porque vazou foto dela pelada.
O homem do posto de saúde que fez escândalo porque não conseguiu os remédios pro HIV.
Veja por exemplo a mulher comprando joia de treze mil no shopping mais caro.
E os filmes de super-heróis.
E as fachadas neo greco-romanas que agridem o mínimo gosto.
E os monumentos arquitetônicos.
E se eu quisesse deixar de ser,
Sair do círculo
Não passar na catraca
Não comprar mais nada
Não ter mais desejo
Falar só o que penso e chorar em público?
Seria um outro eu
Mas seria eu de novo
Revisitado
E tudo isso continuaria sendo.
As soluções que acharam até agora
Foram muitas, listo algumas:
Armas de fogo.
Internação involuntária.
Choque-elétrico.
Cadeia.
Bomba química.
Serviço de streaming e tv interativa.
Livros de autoajuda com áudio e canal online de vídeo.
Curso no exterior.
Fechamento de fronteira.
Novas dietas.
Orgias.
Voto de passeata.
Ditadura.
Xingar a identidade.
Entrar pra um culto.
Tomar uma bebida ameríndia reveladora.
Ataque de pânico.
E se eu saísse do hábito
O hábito dos outros
Me tornaria
Apenas
Um extraviado necessário
Uma perda inútil?
Mas o meu eu já é inútil
Tão inútil
Que nem morte
É opção
Prolongam-se
Nas bases constritas
De morros que eram apenas
Um lugar a subir
Um mitológico ser a carregar pedra
Que rola pro sopé
E depois se busca
E depois se sobe com ela de novo
Outra base que era apenas lago
Porção de água comprimida por não ser oceano
Fez de um outro vaidoso ser
Um apaixonado por si
Que se embebeu e morreu dessa porção
E se eu deixasse de ser?
Nem subir
Nem me afogar
Nem entrar no labirinto
Eu vejo coisas
E as desgosto
Mesmo relativo
E com algum tipo de matéria simbólica
Que até agora
Só fez perceber
Um percebimento
Sem motivo
*
Negativas
Não durmo
Não me aquieto
Não vejo netflix
Não participo do pensamento de massa na rua
Não listo coisas favoritas
Não acordo feliz no sol
Não cumprimento
Não socorro desesperados
Não ouço a música da semana
Não leio os nobéis
Não quero a fama do escritor cristalizado
Não quero cristal
Não quero ouro
Não visto camisa com frase
Não durmo
Não pego ninguém no carnaval
Não durmo
Nunca fui à parada gay
Não durmo
Não tomo xarope
Não dialogo no elevador
Não aceito bêbados sarnetos a puxar amizade
Não gosto de intimidade forçada
Não quero toques no ombro
Não sei limpar meus óculos
Não assisto a notícia da semana
Não transo sem camisinha
Não danço
Não falo em público
Não imagino uma conclusão
Não tomo banho nas férias
Não entendo Paul Zumthor
Não abstraio a técnica
Não encolho o sentimento
Não tateio o que me repele
Não circulo pelos becos
Não crio com frequência
Não disperso nos filmes que assisto
Não programo a leitura de Svetlana Alexiévich
Não concordo com nenhuma afirmação de adaptação literária para o cinema
Não acredito que os ensaios sobre comédia de Aristóteles tenham sido realmente escritos
Não compactuo com a explicação dos suicídios dos famosos
E, pra terminar,
Não sei se o que disse é verdade.
*
Passado
Entoei você na calçada
Chorei sua imagem passada
E sei que agora o querer
É menos mais que uma imagem boba
E fico bobo
Nessas horas
De ficar assim
Besta
Com cachorro-quente na mão
E um ideal nas veias
Do amor que já não é
Mas foi
E nem deve ser lembrado
Purê de batata no pão prensado é mil vezes melhor
Contudo, os morcegos-espíritos dos neurônios
Insistem
Em dissonantes imagens
De inacreditável tranquilidade
Que não mais existe
E o que sobrou
Foram os ganidos
Desses mamíferos monstruosos
Desenhados
Pelos demônios que odeiam
O amor
E nos odiaram
Quando estávamos juntos
E odiávamos também
Sem saber
Que nem eu nem você
Nos queríamos de fato
Mas a imagem resta
E o grito que se alimenta de sangue é pesadelo
De tempos em tempos.