Quatro poemas de Juliana Maffeis
Juliana Maffeis (Porto Alegre, 1987) é professora e escritora. Licenciada, mestra e doutoranda em Letras, na área de Escrita Criativa (PUCRS). É autora de O discurso amoroso de Ana C. (Ed. Fi, 2014) e Solitária companhia de teatro (Ed. Patuá, 2017), além de poemas e contos publicados em antologias e revistas literárias. Em 2021, publica Quantas festas com Christine Gryschek (Ed. Urutau) e Catálogo de ideias abandonadas (Ed. Caos e letras).
Os quatro poemas abaixo integram o livro Quantas festas (Urutau, 2021).
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se todos os postos estão ocupados por ilustres figuras do pensamento contemporâneo venho aqui trazer meu lugar de precipício e fazer rolar as pedras da minha vesícula pouco visíveis a quem silencia ao som das moscas porque moscas quando cantam não há quem não se zangue porque mosca era pra ficar cheirando merda e não tentando passar do vidro das janelas das sacadas das coberturas dos escritórios dos doutores que ouvem nossas histórias comendo brioche com manteiga importada imagina se no meio da cantoria eu caio na sua faca e você sem que me corte me engole ah seria infecção intestinal na certa e os abismos da sua própria voz não fazem eco aqui embaixo aqui no submundo das margarinas sem sal ninguém escuta seu nome dentro de uma bossa triste você tem medo de moscas doutor? pois moscas furtam cores até de flores mortas e cagam por cima daquilo que você nem enxerga
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uma cadela dorme há tanto tempo na porta daquela igreja que já não importa se o ronco vem da barriga ou de um sonho confuso porque sim cadelas sonham e quando sonham sonham com cachorros enormes ou com filhotes sem raça porque cadelas não entendem a diferença entre morte e sono e gosto de ver quando a cadela abana o rabo de olhos fechados e não gosto de ver quando mostra os caninos porque parece que vai morder e ando tão machucada que isso me levaria pro confessionário onde nada sei dizer porque sou uma cadela no cio que confunde o sangue que sai com o sangue que vem
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dois bichos se amam como dois bichos que se amam e depois se soltam e vão embora e cada um segue seu passo como se soubessem pra onde vão e encontro outro bicho que amo e amo como bicho e amo mais que o outro bicho que amava e depois vou embora e lembro que o bicho amado não era tão amado quanto o outro bicho mas que se o bicho não vem não tem como saber o quanto vou amar o bicho como bicho porque bicho só ama quando encontra outro bicho e não quero mais amar como bicho porque sou bicho que ama como bicho e quando deixo de amar deixo meu cheiro de bicho no bicho que amei e sinto seu cheiro de bicho na minha pele de bicho que ama como bicho e a única coisa que sei é que bicho sempre vai embora e quando vou não volto porque me perco no amor de outro bicho que diz que vai e fica e só fico enquanto amo como bicho enquanto como o bicho tipo bicho
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quando antônio saiu daqui deixou tudo que tinha não era muito mas era o que tinha então guardei pensando por que antônio sempre deixa algo como se precisasse dessa coisa de volta e quando antônio volta leva a coisa e deixa todo o resto: ontem quando antônio ligou e disse que não voltaria pra buscar sua camiseta eu nem sabia que me vestia dela há tantos dias porque as coisas de antônio também parecem minhas então não faz diferença quando antônio vem ou quando antônio vai ou quando antônio deixa ou quando antônio leva porque estou sempre vestida de antônio e antônio vive esquecendo seu corpo dentro do meu quando entra na sala e me entrega uma cerveja: antônio você esqueceu de ir embora digo logo que antônio chega e antônio ri como quem precisa buscar água debaixo da chuva como quem precisa daquilo que não precisa como quem quer porque quer como quem gosta de gostar e por isso deixo que antônio volte em busca dessa coisa que não me falta tampouco a antônio desde que venha e vá e volte e suma e apareça como quem coleciona pretextos pra me contar porque sempre volta e nem precisa porque descubro antônio em silêncio e às vezes sinto que antônio pensa que mulheres são perdão e não são antônio se te recebo é porque também preciso entregar algo que guardei e quando devolvo não devolvo inteiro porque isso que sobra ao redor das coisas antônio é o resto daquilo que encontramos quando buscamos uma coisa e levamos outra sem saber porque gostamos das coisas que não se deixam pertencer