Quatro poemas de Leonardo Almeida Filho
Leonardo Almeida Filho é professor universitário, escritor, ensaísta e mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília. Publicou sua tese, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito, pela Editora da UnB, em 2008, e também, O livro de Loraine (romance, 1998) e Logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008). Possui contos e poesias nas coletâneas Antologia do Conto Brasiliense (2004), Todas as gerações (2007) e Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); e Poemas para Brasília (2004). Em 2010, pela Editora Hinterlândia, publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem; e em 2014, pela editora E-galaxia, o volume de contos Nebulosa fauna & outras histórias perversas. Em 2018, lançou o volume de poesias Babelical, e em 2019 o romance Nessa boca que te beija, ambos pela Editora Patuá. Email: leo.almeidafilho@gmail.com
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Poemas do livro inédito Tutano
A luz que não nos ilumina
Ah, se a luz rasgasse as trevas
e iluminasse
cada canto, antro, cova
cave, greta e grota escura
toda senda, fenda e fresta
toda funda voçoroca
Ah, se a luz entrasse
sem pedir licença
em todos os buracos e becos
sótãos, porões e quartos
nos quintos dos infernos de nós mesmos.
Mas não…
A luz só quer brilhar na superfície
onde existem máscaras, dentes brancos
sorrisos botulínicos e mãozinhas de seda
beijinhos intocáveis, olhares ensaiados
versinhos bem rimados, inofensivos
A luz só quer luzir onde não importa
onde ninguém arrota, peida ou palita os dentes
e todos estamos bem alimentados
papai, mamãe, filhinho na missa e no culto
– a luz mais brilhante e fria –
onde reinam as terríveis pulsões
que se escondem na escuridão
dos cantos, antros, covas, caves, gretas, grotas
sendas, fendas, frestas,
fundas voçorocas
buracos e becos, sótãos, porões e quartos
e quintos dos infernos de nós mesmos.
Conversa com Drummond
Não havia pedra
no meio
do caminho, Carlos.
Havia,sim,
o caminho
⁃ o medo –
(Suas possibilidades)
e a terrível sensação
da pedra
ali no meio.
E de repente, meu poeta,
percebemos,
fatigados,
por trás das retinas,
que
a pedra
sempre fomos nós.
Olho de boi
Ela quer que eu fale de flores
de rosas, crisântemos, talvez lírios
– não são lindas? –
Porém não sei uma pétala sequer
e ela insiste que eu cante uma balada,
uma canção de Cat Stevens, um blues
– Sua voz é tão linda quando canta Where do the children play!
Pode ser? –
Mas meu violão desafinou na eternidade quando,
em alguma dobra, enforquei-me em suas cordas de aço
e meus dedos perderam-se nos trastes
Digo a ela que não rola: – Fica tristinha não!
Prefiro em silêncio observar as mãos que ela exibe enquanto fala
e que ficam borboletando sobre o meu desejo em seu casulo
prestes a romper-se.
Ela dorme o sono manso dos que acreditam que tudo é para sempre
mas há tempos algo me impede de sorrir
Enquanto ela me arrasta para a luz
eu só penso na lágrima do boi antes do abate
enquanto ela me convida para dançar na luz
eu sinto a dor do boi antes do abate
enquanto ela tenta me abrir os olhos para a luz
eu me vejo no lugar do boi e do abatedor
e tudo é tão escuro que dá medo.
Anti-epifania
Poderia sim, dançando, louvar o Deus de Abraão e de Davi
mas preferi pescar no Araguaia, picando fumo, cuspindo de banda,
celebrando o fim da tarde em meio aos mosquitos
palito entre os dentes, a alma entre os vícios
e a garganta queimando com a cachaça.
Também poderia, sim, mergulhar na Torá, no Alcorão, nos Sutras sagrados,
esmiuçar, contrito, em silêncio, o Pentateuco e apiedar-me de Hagar
mas decidi-me por caminhar nas ruas sujas do Rio de Janeiro
olhar atento, sempre alerta ao gesto do passante,
ouvindo a pulsação da metrópole.
Tudo isso eu poderia, sim, mas meu coração
persegue um Deus sem história ou registro
sem casa, sem púlpito, sem claustro ou microfone
um Deus tímido, que se mostra nas coisas desprezadas,
e mesmo desprezíveis,
um Deus doce que me acompanha entre os mosquitos
que bebe da minha cachaça
e caminha ao meu lado na Gomes Freire