Quatro poemas de Leonardo Antunes
Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS. É autor do livro João & Maria: Dúplice coroa de sonetos fúnebres (Editora Patuá, 2017).
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tardíloquo
o primeiro
poema do ano
incomposto
inescrito
mas expelido
tirado a fórceps
de escuro ventre
como um dia eu mesmo fui
não há quem queira
(nem humanos nem bichos nem poemas)
vir ao mundo
exceto por coercitiva condução
*
os vermes
os vermes – dizem – somos parasitas,
incompetentes todos, incapazes,
acostumados com la buona vita,
afrescalhados, transgressores quase
ou mais, imputadores da falência
de todos os valores milenares,
sacrílegos a quem a putrescência
recende como o incenso dos altares,
tentadores ilícitos, insanos,
libidinosos futres sodomitas,
sedutores invólucros de enganos,
aliciadores todos, parasitas,
imundos – dizem –, todos excrescentes,
enquanto nos ocultam entre os dentes.
*
o caixa do mercado
o caixa do mercado – não chequei seu nome,
mas seu rosto lembrava um rosto que já tive
há muito tempo (ainda que naquele tempo
eu estudasse os clássicos do mundo grego
e não passasse compras num leitor a laser,
e que em meus olhos habitassem grandes sonhos
e não silenciosa impossibilidade) –
despediu-se de mim com um breve meneio,
vagaroso e singelo, com que respondia
à semelhança que também notara em mim.
*
ecce homo
esse homem, enterrado até o pescoço
na pilha de embalagens e dejetos,
recuperando um naco de alumínio,
um papelão e três garrafas PET,
ou empurrando pelo asfalto quente,
das cinco da manhã às seis da tarde,
duzentos quilos de quinquilharia
no dorso da carroça improvisada,
talvez um dia tenha tido um nome
de que talvez se lembre mesmo que hoje
atenda apenas por fonemas soltos;
talvez nem saiba de que ventre veio
nem a que ventre vai no frio da noite,
quando a tristeza vence o coração.