Quatro poemas de Lucas Schlemper
Lucas Schlemper é poeta catarinense com dedos podres e mania de flanador. Autor de Cá Entre Nós: Odes de Alusão e Ilusão.
Os poemas abaixo integram o conteúdo de seu próximo livro, previsto para 2020.
***
Tu, que me lês nos macegais
Por detrás dos espinheiros
Das cercas-vivas, pelos cantos
Dos muros, nas naturezas-mortas
Talvez recurvo sob o facho do archote
Talvez à luz de telas planas
À fiel distância de quem espreita
Pelos trincos das portas
Pelas frestas da feira
Tu, que me lês como quem se deita
Em cacos, em fragmentos soltos
Nas lascas afiadas do poema
Da epígrafe ao rosto da folha
Crivadas ao corpo como camafeus
Tu, que me lês com olhar sígnico
De quem lança cartas sobre a mesa
De quem se guia pelo eco surdo
Na penumbra dos caminhos
Tu, que me lês no reflexo das vidraças
Fazes, das palavras, corredores
E dos corredores, ameaças
De tua impossível presença
De algo de irrespondível
Que, ao longe, acena,
sem gesto algum.
*
Começo com largas porções
de trapos de tecido.
Depois, cascas de frutas
e restos de vegetais
já fermentados.
Sorvo o suco.
Sugo até a derradeira gota.
Refestelo-me.
Mesmo um cão rejeita
o intragável, mas eu não.
Sou glutônico
e repulsivo,
a tudo devoro
sem fazer distinções.
Exsudo pela língua
o interior corrosivo.
À imagem de meu pai
glutão irrefreável
e pai de todos nós,
herdeiros do tempo.
Mais adiante,
conforme a mocidade chega,
passo a engolir parafusos,
lascas de lâminas, pregos,
alfinetes, moedas e peças
de maquinário.
Garrafas e talheres, louças
e apetrechos de toucador,
frascos de perfume,
malas velhas de viagem.
Placas de trânsito,
bobinas de cobre
balas de canhão.
De jovem adulto, meu apetite
se volta a todo tipo de pequenos
seres.
À beira dos regatos, sirvo-me
de amebas e de salamandras.
Arraias e rãs.
Caço por larvas nos lamaçais,
vermes que rastejam incautos,
centopeias sinuosas e libélulas
que flanam sob a lama.
Quando os encontro,
não os examino,
nem os cheiro:
finco-lhes logo os dentes
e engulo com pressa,
nuns poucos bocados.
Mas há o momento
de minha genealógica sina.
Não sei ao certo
quando é que devoro
um semelhante
pela primeira vez.
Tímido, a princípio,
desprendendo os dedos das juntas,
devagar, roendo desde as pontas
das unhas
até o branco do osso.
Acabo por tomar gosto.
Depois, uns olhos soltos,
um par arrancado de orelhas.
E por que não as vísceras,
tão tenras e nutritivas.
E por que não os músculos,
os nervos e as partículas.
Depois, um corpo por inteiro.
Depois outro, e outro,
e outro mais.
(Perdi as contas
na casa dos trinta)
Daí para a frente
famílias inteiras,
linhagens completas,
estirpes, casas e brasões.
Depois, cidades inteiras.
Hoje, são civilizações
o que devoro.
Herdei de Saturno
o mau hálito
e os maus hábitos.
*
O que era histérico se tornou histórico
Nasceu arquiduquesa
na Áustria.
Foi imperatriz consorte,
regente interina.
Ou marisqueira
na Ilha de Itaparica.
Sua biografia é incerta
e um tanto obscura.
Espiã-dançarina,
capoeirista, talvez.
Nada sobre ela
é conclusivo.
A precursora
do impressionismo
em terras tupiniquins.
Não há consenso:
são parcos os fatos
e ralos os testemunhos.
Pintora;
musicista;
atriz trágica.
Endeusada por uns,
demonizada por outros.
Persona por vezes non grata,
malvista nas rodas.
Perita em ciências ocultas,
assuntos de baixa frequência.
Foi líder de quilombos,
engajada em militâncias
e estratégias de resistência.
Descendente das guerreiras icamiaba.
Cúmplice das múmias sagradas
de Tejecupapo.
Escandalosa — alvo
para baionetas.
Beligerante — como se em frenesi
de combate.
Sibilam coisas horríveis
a seu respeito.
Suspeita do incêndio
de caravelas, da tentativa
de assassinato do presidente.
Dizem que
sequestrou aviões
aos vinte e um.
Desquitou-se
aos vinte e três.
E que, aos vinte e cinco,
primeira de sua linhagem,
deitou ao chão pilares prévios
para erguer outros, mais novos.
Amiga íntima de Clara Camarão,
de Jovita Feitosa,
de Bárbara de Alencar,
de Margarida Maria Alves,
de Carolina de Jesus,
de Leopoldina,
de Dinalva Oliveira,
de Antonieta de Barros,
de Leolinda,
de Teresa de Benguela,
de Maria Auxiliadora Lara Barcelos,
de Lota de Macedo Soares,
de Georgina de Albuquerque,
de Joana Angélica,
de Maria Quitéria,
e de outros tipos perigosos.
Foi espezinhada,
extraditada dos bailes,
esquecida em masmorras,
lançada aos areais.
Mas engana-se
quem pensa
que sua memória
se apagou.
Está ainda mais viva
que antes,
para além do alcance
de qualquer biógrafo.
Atravessou os tempos
e está aqui presente, hoje,
nesta noite.
Dentro de pouco
subirá ao banco dos réus
para rogar uma vez mais
por sua inocência.
É certo que será
condenada.
(Depois,
só muito depois,
canonizada.)
Seus crimes?
O de existir
em demasia
e o de subverter
o imaginário
popular.
*
(com o pensamento em
Rafael Zen e Marcelo Labes)
Isto não é um poema,
adverte o poema.
E este não é um poeta,
garante o poeta,
apontando para
si.
Não há poema.
Talvez já tenha
havido.
E já não há poeta. Não mais.
Sou prestidigitador,
diz o poeta.
Somos todos.
Trabalhamos,
desde sempre,
com a ilusão.
Eis o segredo:
deve-se envolver o espectador
com gestos precisos graciosos
e rápidos de modo que se faça
verossímil o disfarce.
Todos caem — desatentos
aos prefácios.
Exemplo:
isto
que
lês
não é
poe
ma é
uma
serp
ente
l ú b r i c a
r e t e s a d a
p a r a f o r a
d o c e s t o
(com a boca
costurada)
Vê-se a cobra. Não parece real?
Vê o cesto? Tão real quanto!
Vou agora revelar outro truque,
um truque de cartas
marcadas.
Esqueci como se faz. Deixa-me
checar o manual.
Chequei. Faz-se assim:
toma-se as cartas em dois montes,
escreve-se em cada carta do primei-
ro monte os nomes de diferentes ce-
nários terrestres como tundras e char-
cos e pantanais e cárpatos e colinas de
ciprestes e ferrovias que contornam la-
gos e etc, depois, toma-se o segundo
monte e escreve-se em cada carta o no-
me de peculiares emoções humanas
começadas com a letra D tais como
diletantismo divagação dúvida dissi-
mulação discórdia desprazer deslum-
bramento dó desejo e desencanto, de-
pois, no terceiro monte, que estava
escondido à manga, e ali esteve o tem-
po todo abertamente à vista de todos,
escreve-se nomes de mulheres poetas
suicidas tais como Silvinha, Anete, Alê,
Sarita (dramaturgas contam) e depois
retira-se uma carta de cada monte e dei-
ta-as à mesa mentalizando o cosmos até
uma luz divina alcançar-lhe os glúteos
fazer a merda virar um roliço de ouro
a ilusão é tão real que até brilha
Por fim, o maior dos truques,
aquele reservado
para o ato final.
Toma-se um poema,
deita-se ele
sobre uma bancada
e com o emprego
de um serrote
serra-se o corpo
ao meio.
Das metades dividas, faz-se dois
poemas, que se lidos separadamente
versam sobre o exato mesmo tema
do outro. Tanto podem ser lidos
em continuidade quanto à parte.
Quem vê fica bobo:
Isto não deveria ser poema
o primeiro verso criado
isto deveria correr solto
pouco mandado pouco
como quem pouco sabe
se lembra que tem
que teve medo
Vê o rombo?
Nada menos que real.
E não há g o t a
a l g
u
m a
de
s a n g u e
Na próxima eu conto tudo sobre
o poema que se autodevorava
o poema da Absoluta Desconstrução
o poema infinito-em-looping
e outros charmes mais sórdidos.
Voltarei em breve.