Quatro poemas de Maíra Mendes Galvão
Maíra Mendes Galvão (Brasília, DF, 1981) é tradutora, editora de texto e poeta. Mestranda em Estudos da Tradução na USP, pesquisa e traduz o trabalho da poeta modernista inglesa Mina Loy (duas de suas traduções da poeta foram publicadas na antologia Lira Argenta, pela editora Demônio Negro). Seus poemas foram publicados em revistas como Raimundo, Diversos Afins, Parênteses e Casulo. Teve traduções e outros textos publicados na revista Geni e também na Asymptote, com a qual colaborou por um ano como editora-geral para o Brasil. Teve poemas publicados em duas antologias, Golpe: Manifesto, publicada pela editora Nosotros, e Sierra Tropicalia, pela editora mexicana Cielo Aberto. Em 2017, fez parte do grupo “cødigo aberto da performance”, idealizado pelo coletivo Riverão. Deve publicar seu primeiro livro, jamanta na testa, no segundo semestre de 2019 e, no momento, também prepara uma plaquette com seus poemas feios. Desenvolve, junto à poeta Jeanne Callegari, um trabalho de som e texto em performance que inclui leituras performáticas e traduções de textos de Laurie Anderson, Patti Smith, Edna St. Vincent-Millay e outros, além de textos originais, e experimentação sonora com objetos analógicos, piezos, loops e efeitos vocais, sintetizadores em web audio e apps de celular.
Os primeiros três livros são do livro ainda no prelo, jamanta na testa (poemas 2013-2016), o quarto é um inédito.
***
scintilla animae
não ter a gravidade de duas patacas
que atingem o piso e tilintam
ter a gravidade sim de um crânio
plumbum,! ponderoso gongo
cujo grau de dureza veio do
crescimento endógeno do tempo
entremeando-se dobras sobre dobras
nos regos e axilas das curvas
dos 2 polos que mal sabem de suas
encruzilhadas nomeadas teimosamente
como relações de acesso
entrepostos de mundos possíveis
cancros de teoremas que são
agonia dialogia tritonia
ou broma rastelada de fulcro
do castelo da arcada de sonho
diaconisas em santidade forjada
bigorna sobre meu coro
enquanto imagem dobrada
como desdobrar os urros
de um desejo esquecido
dos pinotes avizinhados
selo grande, revém têmpera
alma grossa de ossatura
dos ritmos sincopados
disto que se diz fêmea
está tudo demasiado opaco
está tudo finalmente
finalmente enganado
*
misnOmer
my O
wn O
spooling out
of my O
wn control
presti
digitate
O it seems
so
at the edge
the hinge
so fallow
but NO
aint no
thing mo
tutored and
tailored and
trained than
this tumored O
way
way
too
moored on my own
mired and unknown
stessosessononésucesso
tisminetho
myomine
outinside
spoolingmine
*
ersatzspielerin
teimo em não acender a luz, encalhada
sem saber se quem – eu ou o mundo
é suplente de algo primevo
se o que existe é a tensão ou
degrau de recursividade.
o violento da memória é a retenção do vazio.
penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer:
merimnologia, ou: considerar é arder.
mermeridade, ou: ansiar é condenar-se.
metameridade, ou: a parte pelo todo.
palavras me procuram, procuram a nós
porque as salvamos de um desígnio adjunto
nos lançamos aos fins da tensão.
me vejo merócrina, exocito
e a elas entrego
qual impostora estertorada
o grau primeiro das coisas.
*
saponificação/permanência
“we met with a fat concretion where the nitre of the earth
and the salt and lixivious liquor of the body had coagulated large lumps of fat
into the consistence of the hardest castile-soap: whereof part remaineth with us”
(sir thomas browne, in hydriotaphia, urn burial, 1658)
o ar que o insufla o ser humano carrega a doença congênita de sua condição.
o cadáver sem oxigenação antes identificado com o indivíduo se transforma em artefato (de fatura involuntária).
como operar transfiguração voluntária da condição crônica extracorpórea de ser humano (em vida)?
eis uma taxonomia especulativa de solução mítica de criação por esgotamento
precedida do teorema estabelecido negativamente <o ser n-humano não é carismático>
derivado de axioma hipotético da condição do ser humano em termos de contiguidade:
o ser satânico: ser humano in extremis, liberto em quase tudo, todavia assintótico
o ser bestial: sub-humano, porém espelho das vergonhas do humano
o ser celestial: supra-humano, carne de espuma e soberba, tem sobrevida mercurial e não resiste ao exame
o ser monstruoso: realização de desejo de reorganização de partes humanas, fruto do tédio (e nada mais humano)
o ser para-humano: definido enquanto duplo acessório
o ser mais-do-que-humano: é a premissa derivada da conclusão
o ser não-humano: sua preparação se faz na tábua de corte e não no crisol
quod non erat demonstrandum: algo permanece, ainda que escorregadio.