Quatro poemas de Marcelo Montenegro
Marcelo Montenegro nasceu em São Caetano do Sul (SP) em 1971. É poeta e roteirista de ficção. Publicou Forte apache (Companhia das Letras, 2018), livro que também reúne, na íntegra, os seus dois primeiros trabalhos: Orfanato portátil (2003) e Garagem lírica (2012). Como roteirista, escreveu e integrou a equipe de criação de diversas séries (HBO, MTV, Netflix, Amazon Prime Vídeo, Globo, GNT, etc.).
Os poemas “Eu costumava grifar meus livros” e “Spoiler” integram o livro Forte apache (Companhia das Letras, 2018); “Desassossegos” e “Cinecittà” integram Vídeos caseiros (Corsário-Satã, a sair em 2021).
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Eu costumava grifar meus livros
Um medo danado de nunca mais me deparar
com aquela frase. Depois passei a achar que
os grifos direcionavam muito as releituras.
E os substituí por microdobradinhas nas
páginas. (Cocteau: “Uma única frase, e o
poema todo é levado aos céus!”.) Mas se
este método tem a provável vantagem de
atenuar a arbitrariedade e a feiura dos grifos,
algumas vezes, no entanto, ao reler estas
páginas, não encontrava o motivo delas
terem sido condecoradas com a dobradinha,
ou achava mais de um motivo para tanto.
Coisas de louco com as quais, bem ou mal,
“abastecemos nossa obsessão” (Philip Roth).
Penso até que a literatura se alimenta desse
medo. (Waly Salomão: “Escrever é se vingar
da perda”.) Afinal, de onde vêm os versos
senão dos grifos e dobradinhas que aplicamos
na existência, momentos que roubamos do mundo,
instantes que nossas solidões recrutam para
(W.B. Yeats) o “imundo ferro-velho do coração”?
*
Spoiler
Lembro que você me contou
uma história incrível.
Embora não lembre a história,
sou capaz de soletrar,
inclusive, a brisa que,
por um microssegundo,
inflou a cortina da sala.
(Um pedacinho de uma tarde
dentre as trilhões de tardes
que existiram naquela tarde.)
Lembro as pausas,
a música dos seus braços,
o cabelo tirado do rosto
no momento exato.
(Um bombom de ternura
com licor de naufrágio.)
*
Desassossegos
García Lorca
olhando uma mariposa
afogada no tinteiro
Brian Wilson
sentando ao piano
depois de escutar Rubber Soul
Lucia Berlin
na enfermaria
da simplicidade
Cartier-Bresson
fotografando
a eternidade
Alejandra Pizarnik
terminando sozinha
o que ninguém começou
Murilo Mendes
vendo a cidade cair
das prateleiras do céu
*
Cinecittà
Sabe aqueles sonhos em que você entra num consultório e quem te atende é a desconhecida que acendeu seu cigarro ontem à tarde? Depois você sai de lá e dá de cara com a praça em que brincava de balanço na sua infância? Aqueles posts que merecem curtidas tanto da sua tia Marta quanto de escritores que você admira? Você pode, quem sabe, recorrer a Freud no primeiro caso. No segundo, considerar, vá lá, um atestado de qualidade um texto conseguir chegar a dois planetas tão díspares – de algum modo, ele resvalou no nervo de algo, você pensa. Mas, posto em perspectiva, o que fica talvez seja apenas isso: sua vida, quando muito, não passa de um bairro maluco.
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(Fotografia de Renato Parada [detalhe em p&b da versão original colorida])