Quatro poemas de Maria Brás Ferreira
Maria Brás Ferreira (1998) nasceu e vive em Lisboa, é licenciada em Estudos Portugueses, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Encontra-se a escrever uma tese de mestrado sobre o escritor português Nuno Bragança. Fez Erasmus no King’s College London. Integra a equipa do projecto SEE (sobre Ensaio e Ensaísmo; FCSH-UNL). É fundadora, directora e editora da revista literária Lote, na qual participa igualmente como autora de poesia e ensaio. É poeta convidada, em representação de Portugal, da plataforma pan-europeia Versopolis. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (ed. Flan de Tal, 2020) e Rasura (ed. Fresca, 2021).
Os poemas “Bibe”, “Compra-se Porque Não Está à Venda” e “Inventário de Amantes” integram o livro Rasura. “Causas Naturais” é inédito.
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Bibe
Já não perscruto certos tecidos, já não tomo em mãos certos consolos.
Nas fotografias, no hall, o queixo escorrega, as bochechas patéticas suportam
os traços plúmbeos do rosto. Os olhos, faróis insinuados do mar desfeito,
boiam vagos, raíz do tempo passando.
Que fará agora o que fui? Que fará ela, menina, a mudar as coisas de
sítio? Restarão — por ventura ou desventura — as coisas mudadas? E os sítios?
Havia eu cá estado sempre,
tão breve quanto o mundo escoado, até ao fim, como um início presumido.
Mas urgia ser moderna.
Rasgou-se o bibe, as letras do nome descoseram-se,
sobrou, uivando, o cabide,
e um mar calmo — o mar anda pateticamente calmo.
*
Compra-se Porque Não Está à Venda
a propósito do filme Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira,
e não só
Pois nem tudo começa com lágrimas de Eros e acrobacias de Tanathos,
subo ao púlpito e recolho a miséria do alcance:
as palavras dizem mais de mim do que quero fazer parecer.
Porque nem tudo são os olhos equidistantes de Picasso,
o tinteiro caprichoso de Bacon e a cabeça que é uma cabeça e
logo de seguida o torso erecto de uma monstruosidade de regaços.
Nem sempre estamos na volta do meio-dia de Herberto,
raptando os cruzamentos felinos do sol e da vizinha ousada na janela.
Porque faltam mais de 80 dias de viagem ao centro da boca.
Porque ainda nos falta tanto vai-se acautelando:
porque, afinal de contas, mandaram-me num bote de salvamento, no oceano
a naufragar e soube afogar-me no repouso para depois,
a saborear a carne pútrida com fumo e água benta.
*
A menina Teresinha adora, sempre que por lá passa,
a boneca na montra,
que Carlinhos, sincero apaixonado de Teresinha, roubará
para dar a ternura que lhe falta dar e que não está à venda.
*
Inventário de Amantes
I
Aceitava de uns os cigarros dos seus maços.
Com outros era-me higienicamente exigido comprar o meu
próprio maço.
Entre moedas e restos de folha de tabaco
sobram-me as mãos vazias inolentes;
compõem-se os poemas — mulheres bonitas que os homens gostam de namorar
fumando.
II
O que os forretas dão com maior facilidade
são cigarros.
A culpa quer-se sempre partilhada.
*
Causas Naturais
Houve um tempo em que andava sempre de
olhos esbugalhados.
Não era um hábito, era quase habitual e não é
certo igualmente que nos aprove júbilo gastar a
infelicidade restante, daí os mocassins, que têm mais
sinónimos do que o bom gosto e o bom senso
fariam prever, lembrarem a razão de ali ter estado:
acomodada no banco do carro, do alto de um fetiche
atracado para mais tarde: como os bares da burguesia
Ocidental miam tristonhos se lhe não roçam
cetins em noites de baile.
A tipografia balanceada da fuga sobe-me
à boca a vontade de um estrépito qualquer,
alguma efervescência para que não findem
jamais os começos. Mais que uma vez se vive,
deixem já e sem modos que escape aos impostos e foda
meia cidade para confundir a notícia
da minha sexualidade, dos meus cabelos curtos e dos
olhos que, dizem videntes, são jovens e seriamente curiosos,
ao passo que vejo vergonhas e amo-as por isso, como nos vãos
de escadas as meninas são bonecas pipis e baixas e sujas e
escorrem cera, mas o que guardo verdadeiramente
são as photoautomats parolas
a que presunção nenhuma escapa. Dizem:
— como Perceval, não saiu de casa até aos 15 e agora
anda a compensar o tempo perdido e é amarga e torta, quando quer.
Adágios de luto cegai meus olhos a troco de uma ária de nada!
Eu não responderia, deixaria que a mamã ou o papá concertassem/
escamoteassem um escândalo: para que havemos de nos insinuar
mártires se de uma conta redonda se vela o consolo?
O Atlas do Reader’s Digest aguarda que lhe retirem
o pó num dia de arrumações (carroceL colmêya ciNta lássa):
eu brinco sempre que são limpezas de primavera fora do tempo,
porque se há coisa que se não faz lá em casa é limpezas
de primavera na Primavera: mais isto do que qualquer limpeza
de facto.
Dir-me-iam: traça com o dedo um plano,
usa a pele, rouba alguns minutos ao pó e o Atlas
dir-te-á, pelo menos, se é para mudar de roupa,
se acaso se justifica calçar uns saltos,
improvisar um blush, abrir a blusa…
As mulherzinhas continuarão a ler Murakami,
os sádicos algum livro de bolso,
e os poucos apaixonados acabam
no limite acessível do cigarro, assim mais
difícil de apagar, para não acabar de vez com a exuberância
dos desesperados que convém sermos de quando em quando.
Fumam Marlboro nas noites de passagem de ano e pintam
de cor o primeiro desastre de Sofia, ou a última das últimas
Condessas de Ségur, como quem massaja sem desfolhar
uma rosa, ocarina rouge cheia de tralha.
No departamento de Estudos Portugueses
da universidade acontece on a daily basis, sem domingo gratuito,
ou hora brunch que safe a carteira, a exposição do antídoto
contra o óbvio: a senhora da portaria é nova e com certeza
diverte-se a ver os professores, repolhos, catatuas
e um ou outro escasso mamífero, formarem as mais
engenhosas teorias citando mal a fonte, que faz tac tac tac
sobre o patamar, não sabe nada de línguas, não conhece
o critério das origens, mas esconde as chaves das salas de aula
e brinca com as fronteiras da presunção, mal sabendo
que não há política internacional como a diplomacia
a-filológica dentro do sítio a que se usa chamar:
a nossa segunda casa.
Luis Sátiro
Simplesmente, amei os poemas da Maria Brás Ferreira.
Muito bons!